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O choque entre progressismo e conservadorismo entre os eleitores latinos

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 13/03/2022 10:08 | Análises
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Em 29 de janeiro, nós discutimos a relação entre religião e política nos Estados Unidos. Naquela oportunidade, chamávamos atenção para o papel exercido por denominações evangélicas neopentecostais e pelo televangelismo como elementos que têm se tornado relevantes nas disputas políticas do país. Também mencionamos que um comportamento social mais conservador tem trazido este segmento para mais perto do Partido Republicano.

Outro fato a ser considerado diz respeito ao aumento do peso demográfico da população de origem latino-hispânica nos Estados Unidos, tal como discutimos em nossa primeira análise, em 14 de outubro de 2021, em que analisamos a população latina nos EUA. De acordo com pesquisa do Pew Research Center, de 2020, “Em todos os 50 estados, a proporção de eleitores brancos não hispânicos elegíveis diminuiu entre 2000 e 2018, com 10 estados experimentando quedas de dois dígitos na proporção de eleitores brancos elegíveis. Durante esse mesmo período, os eleitores hispânicos passaram a representar parcelas crescentes do eleitorado em todos os estados. Esses ganhos são particularmente grandes no sudoeste dos EUA, onde estados como Ndevada, Califórnia e Texas tiveram um rápido crescimento na participação hispânica do eleitorado em um período de 18 anos. Essas tendências também são particularmente notáveis em estados de campo de batalha — como Flórida e Arizona — que provavelmente serão cruciais para decidir as eleições de 2020. Na Flórida, dois em cada dez eleitores elegíveis em 2018 eram hispânicos, quase o dobro da proporção em 2000. E no estado emergente do Arizona, os adultos hispânicos representavam cerca de um quarto (24%) de todos os eleitores elegíveis em 2018, um aumento de 8 pontos percentuais desde 2000.”

Esta situação que revela a diminuição relativa da população branca no país poderia ser uma notícia animadora para os dirigentes do Partido Democrata, agremiação que tradicionalmente atrai a simpatia das minorias étnicas, principalmente de afro-americanos e latinos. Considerando a tendência histórica de que até 2050 o percentual de latinos atingirá 25% da população, seria factível supor que ocorreria um maior apoio desse grupo aos democratas, que vêm perdendo influência entre a população branca dos estados com menor urbanização.

Entretanto, quando se considera o crescimento do movimento dos setores evangélicos e suas posições mais conservadoras, principalmente entre as comunidades latinas, a situação dos democratas não parece ser confortável. Temas relacionados à pauta de costumes, como direito ao aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo e, mais recentemente, a chamada “Teoria Racial Crítica” estão levando o eleitorado a uma posição mais próxima do Partido Republicano. A inesperada vitória de republicano Glenn Youngkin nas eleições para governador da Virgínia, em 2021, é bastante sintomática, ele concentrou o seu discurso na pauta de costumes, nas medidas sanitárias para o enfrentamento da Covid-19, e na educação, onde rechaçou duramente o ensino da teoria racial crítica, justamente por algo que incomoda a maioria branca ao revelar as características do racismo estrutural nos Estados Unidos. O revés foi ainda mais sentido para os democratas visto que Biden venceu a eleição de 2020 no estado com uma vantagem 9 pontos percentuais.

Os republicanos ganharam terreno ao conseguir incutir em parte da população a ideia de que os democratas são socialistas, contrários aos “valores americanos” e defensores de pautas que agridem a família tradicional. De fato, existem parcelas do Partido Democrata na linha de frente pelos direitos humanos, como a livre manifestação das pessoas acerca da própria sexualidade, o casamento de pessoas do mesmo sexo, os direitos reprodutivos das mulheres, a denúncia do racismo estrutural e a luta por direitos trabalhistas etc. Entretanto, as parcelas mais conservadoras enxergam nessa postura uma agressão aos seus valores, daí o apoio aos republicanos e a Trump, particularmente porque este nunca foi um modelo da piedade cristã. Aqui em nosso portal nós já destacamos que o gênero neutro “Latinx” não é bem visto pela maior parte da comunidade de latinos/hispânicos, mas ele é bastante utilizado pelos setores mais progressistas do movimento social latino e pela esquerda democrata, geralmente. 

Um dado interessante trazido pelo jornal Los Angeles Times de 4 março de 2022, diz respeito ao crescimento do número de latinos neopentecostais ou evangélicos. Conforme o artigo: “Os católicos não constituem mais a maioria da população latina dos EUA. Nas pesquisas do Pew Research Center RDD (discagem de dígitos aleatórios) realizadas em 2018 e 2019, 47% dos latinos se descreveram como católicos, abaixo dos 57% de uma década atrás. Enquanto isso, a parcela de latinos que se identificam como protestantes evangélicos é de 16%, e a parcela de latinos que dizem não ter filiação religiosa é agora de 23%, acima dos 15% em 2009. Muitos latinos estão se politizando por meio de igrejas evangélicas lideradas por pastores que insistem que não estão em dívida com nenhum partido, mas normalmente adotam posições conservadoras em questões centrais como aborto, liberdade religiosa e casamento entre pessoas do mesmo sexo, e estão intensificando seu ativismo antes de eleições nacionais em 2022 e 2024.” Esta informação é muito importante, não apenas pela conversão de parte dos católicos em evangélicos, mas também porque a influência das igrejas evangélicas é crescente em países da América Central e da América do Sul. Ainda na questão do tradicionalismo cristão, não se pode esquecer a influência de correntes conservadoras católicas, como a primazia da Opus Dei, muito influente nos Estados Unidos. 

Este choque entre correntes ideológicas em meio ao eleitorado latino pode ser exemplificado pela disputa no 28.º Distrito do Texas, que se estende da cidade de San Antonio a Laredo, no vale do Rio Grande, onde os latinos formam a maioria absoluta da população. É um distrito que tradicionalmente elege um congressista democrata, mas Joe Biden obteve uma vitória apertada sobre Donald Trump, de 51,6% a 47,2%, o que indica que parte considerável dos latinos optaram pelo candidato republicano.

Nas prévias democratas, de um lado, se colocou Henry Cuellar, 66 anos, o atual representante no seu nono mandato. De outro, uma jovem de 28 anos, Jessica Cisneros. Cuellar é visto como um político tradicional e com ideias bastante conservadoras, marcadamente contrário ao aborto. Já Cisneros se espelha na deputada Alexandria Ocasio-Cortez, de ideias progressistas, que conseguiu vencer as prévias no distrito do Bronx, em 2018, contra um tradicional político do establishment de seu partido. Nas prévias realizadas em 1 de março, nenhum dos candidatos obteve a maioria dos votos. Cuellar obteve 48,4% e Cisneros 46,9%, mas a quantidade de votos obtidos pela candidata foi surpreendente, se considerarmos a disparidade de recursos entre ambos os candidatos. A definição do nome democrata à Câmara dos Deputados ocorrerá por meio do segundo turno, que está agendado para maio. 

No outro campo, a definição da candidatura dos republicanos para o 28.º Distrito também ficou para o segundo turno. De um lado, a vencedora do primeiro turno, Cassy Garcia, com 23,5%. De origem latina, ela trabalha como vice-diretora estadual do senador Ted Cruz, conhecido por defender a indústria do petróleo e por ser linha dura no Senado. De outro, Sandra Whitten, com 18,0%, que se declara conservadora, mulher de família dedicada e líder comunitária. Vale considerar que enquanto a prévia democrata contou com a participação de 48.600 pessoas, apenas 24.900 votaram nas prévias republicanas. 

A respeito das prévias no Vale do Rio Grande, no Texas, vale a pena considerar a opinião de Carlos Sanches, que chama atenção para o conservadorismo da população desta região, que pode abandonar a tradicional influência democrata: “Os hispânicos que vivem ao longo da fronteira são muito mais conservadores do que os democratas do Texas em geral. Um dos segredos abertos da região é o grande número de DINOs (Democrat in Name Only) [que pode ser traduzido para o português como ‘Democratas de Fachada’] que estão em posições de liderança. Muitos funcionários, dizem os moradores em silêncio, concorrem como democratas, acreditando ou não na plataforma do partido, porque concorrer como republicano tem geralmente sido o beijo da morte. Mas durante o governo Trump, trens ou caravanas de carros de Trump expressando apoio ao ex-presidente tornaram-se quase comuns no condado de Hidalgo, a âncora sul do 15.º distrito. Como um apoiador de Trump me disse, ficou mais fácil republicano nos últimos anos com um número crescente de pessoas declarando lealdade a Trump com base em questões econômicas e de segurança nas fronteiras.” A propósito, a candidata republicana que ganhou as prévias no 15.º Distrito, Monica De La Cruz Hernandez, é favorita para chegar ao Capitólio.

Nesse sentido, as maiores chances eleitorais nesses distritos na fronteira com o México estão com aqueles que parecem ser mais conservadores do que os outros mais progressistas. 

Biden e o Discurso do Estado da União

Seria praticamente impossível refletir sobre a política dos Estados Unidos sem mencionar os impactos provocados pela guerra na Ucrânia. É o que faremos a seguir.

No boletim de 7 de janeiro de 2022, mencionamos que “caso não haja algum evento fortuito, como aquele que impulsionou a popularidade de George W. Bush, em 2001, é improvável que os democratas consigam manter a atual bancada no Senado e na Câmara dos Representantes”. Por conta disso, advertimos que a perda de apoio dos eleitores latinos teria um grande peso no destino dos democratas nas eleições de meio de mandato. Entretanto, nas últimas semanas este evento inesperado ocorreu: a invasão da Ucrânia por tropas russas. 

A reação do governo Biden foi imediata. Buscou alinhar a posição com os parceiros europeus e instituiu uma série de sanções contra a economia e autoridades da Rússia. Até mesmo o Partido Republicano se alinhou ao presidente na resposta política contra o governo de Vladimir Putin, apesar de as alas republicanas trumpistas terem apoiado discretamente as ações russas. Hoje, mesmo os trumpistas no Congresso estão se esforçando pela adoção de uma linha mais dura por parte da OTAN.

Nesse contexto, ocorreu o tradicional “Discurso do Estado da União”, ocorrido em 1º de março, em que Joe Biden dedicou um grande espaço para justificar suas decisões acerca do conflito na Ucrânia. Em certo momento, disse Biden “Junto com vinte e sete membros da União Europeia, incluindo França, Alemanha, Itália, além de países como o Reino Unido, Canadá, Japão, Coréia, Austrália, Nova Zelândia e muitos outros, até a Suíça. Estamos infligindo dor à Rússia e apoiando o povo da Ucrânia. Putin está agora isolado do mundo mais do que nunca. Juntamente com nossos aliados, estamos agora aplicando poderosas sanções econômicas. Estamos cortando os maiores bancos da Rússia do sistema financeiro internacional. Impedir que o banco central da Rússia defenda o rublo russo, tornando inútil o “fundo de guerra” de US$ 630 bilhões de Putin. Estamos obstruindo o acesso da Rússia à tecnologia que irá minar sua força econômica e enfraquecer suas forças armadas nos próximos anos.”  

É preciso assinalar que a imprensa dos Estados Unidos está alinhada com as sanções anunciadas contra a Rússia. Imediatamente foi reestabelecido o clima da Guerra Fria e explorada a antiga desconfiança da população contra o país. A cobertura da guerra tem dado destaque às ações de defesa da Ucrânia e o exército russo e Putin foram demonizados. O fantasma do inimigo interno novamente serviu para aglutinar uma sociedade bastante fragmentada.

Isto se refletiu na popularidade de Joe Biden. De acordo com pesquisas da PBS NewsHour/NPR/Marist, a aprovação do governo Biden subiu 8% após a transmissão do discurso do Estado da União. De acordo com Laura Santhanam, “independentemente de idade, raça, geografia, renda ou política, a maioria dos americanos diz apoiar sanções econômicas contra a Rússia e está disposta a pagar preços mais altos pelo combustível. Mas eles também estão preocupados de que a Rússia possa usar força malévola além da vizinha Ucrânia e ameaçar os EUA e seus aliados com ataques cibernéticos, armas nucleares ou uma guerra mais ampla.”

A guerra, conforme podemos verificar, poderá ter uma influência decisiva nas eleições de novembro, independentemente do movimento que descrevemos sobre o deslocamento de parcela do eleitorado latino para as hostes republicanas. O discurso patriótico e de unidade nacional pode servir de argamassa para consertar em parte um sistema político em ruínas.

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