O analista chinês Eric Li, em
vídeo publicado no Youtube, fez uma comparação interessante entre os modelos políticos da China e dos Estados Unidos. Li afirmou que na China, apesar de manter o mesmo partido no poder, as políticas mudam, mas nos Estados Unidos, apesar das trocas de partidos no governo, as políticas não mudam, pois o poder econômico possui um grande peso para que as coisas não mudem em favor dos interesses das pessoas comuns, enquanto que na China os empresários não tem como impor sua política ao Partido Comunista. De forma geral, para as pessoas comuns que vivem em países com sistema político liberal-democrático e processos eleitorais periódicos, cada vez mais têm a percepção de que as promessas que são feitas durante o período da campanha eleitoral não trazem mudanças positivas e significativas em suas vidas. Na pratica, as eleições trazem consigo mais frustrações do que resultados.
Este problema foi tratado pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, em seu livro “Ruptura, a crise da democracia”, de 2018, em que analisa o colapso da democracia liberal como modelo político de representação e governança, mostrando que “os cidadãos votam, elegem e até se mobilizam e se entusiasmam por aqueles em que depositam esperanças, mudando volta e meia quando a esperança supera o medo de mudança, que é a tática emocional básica na manutenção do poder político. Mas a recorrente frustração dessas esperanças vai erodindo a legitimidade, ao mesmo tempo que a resignação vai sendo substituída pela indignação quando surge o insuportável”. Sua crise abre espaço à ascensão de grupos autoritários, partidos nacionalistas, xenofóbicos e supostos críticos à política tradicional.
Nesse aspecto, a mudança de governo nos Estados Unidos, com a eleição de Joe Biden, em novembro de 2020, foi vista pela imprensa e analistas políticos como uma oportunidade para a superação dos piores traços do trumpismo, como a xenofobia, o autoritarismo, as mentiras (ou verdades alternativas, como seu grupo gosta de mencionar), o negacionismo da ciência e o desprezo pelas minorias. A grande aliança feita no entorno de seu nome, que reuniu políticos de centro-direita, empresários, socialistas democráticos, feministas, antirracistas, ecologistas, etc. trazia uma certa esperança que os rumos da política dos Estados Unidos poderiam mudar substancialmente.
Porém, conforme descreveremos a seguir, a frustação com a falta de mudanças perceptíveis para a sociedade vem trazendo uma nova frustação para os seus eleitores. Passados 11 meses de governo, a popularidade de Joe Biden está em níveis muito baixos, com 42,5% de aprovação e
51,8% de desaprovação. Seus índices são os piores na comparação com os últimos 6 presidentes (desde 1981, com Ronald Reagan), e apenas é superior aos índices de Donald Trump, que no final de 2017 era aprovado por apenas por 38%.
As dificuldades enfrentadas por Biden em entregar as promessas de campanha se refletiram no maior desafio que os democratas enfrentaram desde sua posse, na eleição para governadores nos estados da Virginia e New Jersey. No primeiro, os democratas sofreram uma dura derrota. O ex-governador Terry McAuliffe perdeu por uma margem de 2% para o empresário republicano Glenn Youngkin, que durante a campanha foi associado a Donald Trump e utilizou uma pauta baseada em costumes para se impor ao eleitorado. Cabe esclarecer que, um ano antes, Joe Biden havia ganhado as eleições por uma margem de 10 pontos percentuais! No segundo, em New Jersey, onde Biden venceu a eleição com uma margem de 16%, parecia que os democratas teriam uma vitória tranquila, mas o governador Philip (Phil) Murphy venceu por apenas 3,2% o candidato republicano Jack M. Ciattarelli.
Donald Trump ainda é uma corrente muito expressiva na política americana. Apesar da derrota em 2020, o trumpismo é uma força viva e bem articulada, influenciando e limitando fortemente a atuação de Joe Biden. Em que pesem as mudanças ocorridas na política externa no que tange ao combate à mudança climática e numa nova articulação com seus aliados no G7, ou a ênfase no pacote de investimentos em infraestrutura, a essência das diretrizes de Trump continuam ativas no governo atual, como na política de contenção da China, a política tributária e as políticas de imigração. Isso se deve à forte pressão dos republicanos na Câmara e no Senado, na própria desarticulação do partido Democrata em ambas as casas e nas restrições impostas pela Suprema Corte, cuja maioria é conservadora.
Um dos temas que alimenta a frustação é a imigração. Uma mudança nos rumos dessa política esteve no centro das promessas eleitorais de Joe Biden, justamente para buscar o apoio da grande comunidade latina presente nos Estados Unidos. Nesse aspecto, duas questões sobressaíam: a mudança nas diretrizes de Trump que criou a política “Remain in Mexico”, que proibia o ingresso de imigrantes em território estadunidense para solicitar asilo, e a legalização de aproximadamente 11 milhões de imigrantes “indocumentados”, que vivem nos Estados Unidos de forma ilegal.
Com relação ao primeiro, em 24 de agosto de 2021, a Suprema Corte negou o pedido de emergência do Departamento de Justiça para suspender a decisão de um tribunal inferior exigindo que o governo voltasse a adotar a política de imigração da era Trump, a que força requerentes de asilo a esperar no México por uma audiência nos Estados Unidos. A ordem representa um duro golpe para o governo Biden, que, como resultado, será forçado a fazer um esforço de "boa fé" para reiniciar o programa de Protocolos de Proteção ao Migrante - ou "Permanecer no México", como é mais conhecido.
No que diz respeito à intenção dos democratas de legalizar a situação dos “indocumentados” por meio ao acesso a serviços públicos, a parlamentar do Senado (algo como a Secretária-Geral da Mesa do Senado no Brasil), Elizabeth MacDonough, bloqueou, em 19 de setembro de 2021, a inclusão de recursos no orçamento federal, no âmbito das discussões sobre o projeto Build Back Better (BBB), destinados a aumentar a oferta de serviços públicos para 8 milhões de imigrantes. Na visão dela, isso aumentaria o déficit orçamentário em cerca de US$ 139 bilhões. A decisão de MacDonough teve um impacto importante no processo legislativo, pois impede o processo chamado de “reconciliação”, algo que permitiria aos democratas aprovarem uma lei por maioria simples. Assim, qualquer legislação envolvendo o tema dependeria do apoio de pelo menos 10 senadores republicanos, o que é praticamente impossível nas circunstâncias atuais, já que o trumpismo se assenta na pauta anti-imigração.
A incapacidade dos democratas em resolver o problema da imigração está gerando frustração na comunidade latino/hispânica nos Estados Unidos. A situação foi agravada com as imagens de soldados da patrulha de fronteira em cavalos atacando um grupo de imigrantes haitianos que tentava ingressar no país, entre eles famílias com crianças pequenas. A brutalidade da polícia foi similar à do governo Trump, desagradando fortemente a população latina e a corrente mais progressista do Partido Democrata.
Nesse aspecto, é interessante notar que a opinião pública dos Estados Unidos continua muito pautada pelos preconceitos difundidos na gestão de Trump, pois a maior parte dela é contrária à adoção de políticas mais flexíveis para a imigração. De acordo com pesquisa publicada pelo
Pew Research Center, em 03 de Maio de 2021, a maioria defende o aumento de pessoal nas fronteiras, a redução da vinda de imigrantes, dificultar a concessão de asilo e apoiar os países de onde provém a massa de imigrantes, principalmente no chamado Triângulo Norte da América Central para que melhorem suas condições econômicas para deter a imigração. A pesquisa traz outras conclusões, mas aponta uma forte rejeição sobre a política migratória dos primeiros meses da administração Biden. Ainda com relação a este tema, é importante mencionar a visita da Vice-Presidente Kamala Harris, em 7 e 8 de junho, ao México e Guatemala com vistas a discutir a situação da imigração e a inclusão dos países da América Central na estratégia Build Back Better Word (B3W) com vistas a criar oportunidades de emprego e tentar conter as correntes migratórias rumo aos Estados Unidos.
Outro carro-chefe da campanha de Biden foi a promessa de fazer um grande plano de resgate da economia pós-Covid-19, a reconstrução da infraestrutura do país, a reconversão energética ao priorizar fontes alternativas à queima de carvão e petróleo e um pacote de assistência social e serviços sociais. Quando foi lançado, em março de 2021, os gastos estimados excediam USD 3 trilhões. Entretanto, desde então essas iniciativas estão tendo dificuldades para avançar no Congresso. Diante da férrea oposição dos republicanos, os democratas deveriam mostrar maior coesão. Mas isso está sendo minado à esquerda, por congressistas como Alexandria Ocácio-Cortez (NY), que vem tentando avançar com o pacote de assistência social que beneficiaria as pessoas da classe trabalhadora, como à direita, como é o caso dos senadores Joe Manchin (WV) e Kyrsten Sinema (AZ), que são contrários ao aumento de impostos para os mais ricos e também ao aumento do déficit público. Considerando que os republicanos possuem 50 cadeiras num total de 100, qualquer defecção no lado democrata inviabiliza os projetos da Casa Branca.
A incapacidade de Joe Biden entregar as promessas eleitorais está causando preocupação entre os democratas sobre a possibilidade de perderem a maioria apertada que hoje possuem na Câmara e ainda de diminuir ainda mais seu peso no Senado. Conforme mencionamos, as eleições estaduais na Virgínia e em New Jersey acenderam o sinal de alerta sobre a rápida perda de popularidade do partido. A isso se soma os efeitos do
Censo de 2020 e do redistritamento que o acompanha, impactando negativamente estados tradicionalmente democratas por conta, como Nova York, Illinois e California, e aumentando as cadeiras de estados controlados por republicanos, como o Texas, Flórida e Montana. Se com a atual composição o governo de Joe Biden encontra dificuldades para aprovar suas propostas, o governo seria potencialmente paralisado frente a uma maioria republicana em ambas as casas do Congresso.