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Despir um santo para cobrir outro: o dilema de Joe Biden ao flexibilizar as regras de controle de imigração na fronteira com o México

Marcos Cordeiro / Thais Lacerda | 09/04/2022 23:09 | ANÁLISIS
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No dia 1º de abril, o governo de Joe Biden anunciou a flexibilização da aplicação da lei conhecida como “Title 42” que barrava os pedidos de imigração legal na fronteira com o México sob o argumento de conter a pandemia e Covid-19. A decisão entrará em vigor a partir de 23 de maio. O governo espera que nesse período de sete semanas as autoridades de imigração na fronteira possam se adaptar ao esperado grande afluxo de pessoas em busca de asilo. 

A legislação em questão foi criada durante a Segunda Guerra Mundial com vistas a impedir a introdução no país de doenças infectocontagiosas por meio da restrição de acesso às pessoas e mercadorias estrangeiras em razão da existência de qualquer doença transmissível. Esta medida foi reintroduzida em março de 2020, pelo ex-presidente Donald Trump, para fazer frente ao avanço da pandemia de Covid-19. Em que pese a emergência sanitária, ela foi extensamente utilizada para barrar a entrada de imigrantes, majoritariamente vindos do México e de países da América Central, pela fronteira sul do país. 

Desde que foi adotada, a aplicação do “Title 42” foi muito criticada pelas organizações sociais de defesa da imigração e por setores do Partido Democrata. Entretanto, o governo de Joe Biden não conseguiu se desvencilhar dessa herança de Trump até este mês porque enfrentou restrições impostas pela Suprema Corte nesse sentido. Cabe lembrar que em 8 de dezembro, aqui no Latino Observatory, nós abordamos o problema dessa política, também conhecida como “Remain in Mexico”, em que as pessoas que requerem asilo nos Estados Unidos devem permanecer em território mexicano e aguardar a convocação de um juiz das cidades fronteiriças. Entre março de 2020 e fevereiro de 2022, as autoridades dos EUA ao expulsaram 1,7 milhão de migrantes na fronteira com o México sob o Título 42. Em princípio, os cientistas dos “Centros de Controle e Prevenção de Doenças” (CDC, na sigla em inglês) se opusessem à política, argumentando que não havia uma lógica legítima de saúde pública por trás dela, mas ainda assim, o governo de Donald Trump reforçou a ordem, cujo objetivo central era mais barrar a imigração do que conter o avanço da pandemia.

Um artigo publicado no jornal “The New York Times”, de 2 de dezembro de 2021, exortou uma nova a postura por parte Joe Biden, uma vez que não conseguiu suspender a medida restritiva criada por Donald Trump. À época, Eileen Sullivan escreveu: “Espera-se que o governo Biden suspenda em breve uma regra de saúde pública da era Trump que usa a pandemia de coronavírus para justificar a rápida retirada de famílias migrantes na fronteira com o México. De acordo com o governo, a regra era necessária para impedir que o vírus se espalhasse nas comunidades americanas e nas instalações de detenção, onde os migrantes que buscam asilo geralmente ficam confinados por dias. Mas os defensores da imigração e dos direitos humanos dizem que a regra, conhecida como Título 42, foi usada indevidamente como ferramenta de fiscalização, forçando os migrantes a retornar a situações perigosas. Eles pressionaram o presidente Biden a suspender a regra, que foi implementada pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças. Alguns dos grupos, incluindo a União Americana pelas Liberdades Civis, processaram o governo para impedi-lo de usar a regra para expulsar famílias migrantes.” 

O tema da imigração é bem controverso no Estados Unidos. Há uma grande resistência de parcela significativa da população contra o afluxo de novos imigrantes, notadamente os eleitores do Partido Republicano. Por outro lado, entre a comunidade latina/hispânica, de tendência democrata, há uma forte demanda para que a legislação imigratória não apenas afrouxe as restrições, como também adote medidas para regularizar a situação de milhões de pessoas “indocumentadas” que vivem ilegalmente no país. 

Por ser bastante controverso, o tema é objeto de acirradas disputas entre democratas e republicanos. O Congressional Hispanic Caucus (CHC), vinculado ao Partido Democrata, emitiu uma nota assinada por seu presidente, Dr. Raúl Ruiz (CA-D) em defesa da medida: “Hoje é um ponto brilhante na história de nossa nação com o fim da política do Título 42 iniciada por Trump . O CHC pediu repetidamente o fim dessa política, que foi alimentada pela agenda anti-imigrantes de ódio e medo de Trump, que usou a pandemia como desculpa para negar aos requerentes de asilo seu direito legal ao devido processo. (...) Acabar com a política do Title 42 da era Trump significa que todas as pessoas que fogem para salvar suas vidas, seja de um ditador russo ou de cartéis de drogas, terão seu direito legal ao devido processo e seus casos ouvidos para status de proteção de asilo sem medo de serem jogados de volta aos perigos dos quais eles fugiram. O CHC aplaude os esforços do governo Biden para cumprir sua promessa de construir um sistema de imigração profissional e humano. Vamos avançar com o governo para abordar as causas profundas da migração, melhorar a eficiência das fronteiras e defender nossos valores americanos de liberdade e justiça para todos, trabalhando para garantir que todos os requerentes de asilo recebam o devido processo e sejam tratados com humanidade.”

Por sua vez, os republicanos reagiram de maneira enérgica em sentido oposto. O governador da Flórida, Ron DeSantis condenou o término do “Title 42” pelo governo Biden, apesar de, na sua visão, dos temores de outro influxo em massa de imigrantes ilegais na com o México. De acordo com nota divulgada em 1º de Abril: “As políticas de fronteira imprudentes de Joe Biden permitiram que mais de 2 milhões de estrangeiros entrassem ilegalmente em nosso país pela fronteira sul. Revogar a autoridade do Title 42 sobrecarregará o fluxo já elevado de estrangeiros ilegais, aumentando o tráfico de drogas, de pessoas e de sexo. Biden está falhando miseravelmente em executar fielmente a lei e está violando seu juramento de posse”.

O governador do Texas, Greg Abbott, também divulgou um comunicado sobre o assunto: “As políticas de fronteira aberta do presidente Biden são um desastre absoluto para a segurança nacional. Sua imprudência forçou o Estado do Texas a tomar medidas sem precedentes para preencher as lacunas, incluindo o envio de soldados do Departamento de Segurança Pública do Texas e mais de 10.000 soldados da Guarda Nacional do Texas para prender imigrantes ilegais acusados de invasão e tornando-se o primeiro estado a construir um muro para proteger a fronteira. (...) Acabar com as expulsões do Title 42 sinalizará para cartéis e migrantes que nossa fronteira sul está agora aberta - incitando ainda mais violência, mais tráfico e mais ilegalidade. O presidente Biden claramente não tem intenção de proteger a fronteira executando fielmente o comando do Congresso para deter e deportar imigrantes ilegais.”

Se por um lado Biden consegue amenizar as críticas dos setores progressistas do Partido Democrata, ele está enfrentando forte oposição dos setores mais conservadores de seu partido, especialmente de dois senadores democratas que sistematicamente bloqueiam suas iniciativas: Joe Manchin (WV) e Kyrsten Sinema (AZ). No entanto, outro senador também se opôs duramente à medida, Mark Kelly, do Arizona. Em 1º de abril, os senadores Kelly e Sinema divulgaram uma nota muito dura contra a decisão de revogar o Title 42: “Esta é a decisão errada. É inaceitável encerrar o Title 42 sem um plano e coordenação para garantir um processo seguro, ordenado e humano na fronteira”, disse o senador Kelly. “Terminar prematuramente o Title 42 sem um plano abrangente e viável colocaria em risco a saúde e a segurança das comunidades e migrantes do Arizona. (...) Continuarei pressionando por transparência e responsabilidade do governo para ajudar a proteger a fronteira, manter as comunidades do Arizona seguras e garantir que os migrantes sejam tratados de maneira justa e humana.”

Para os republicanos, a revogação das medidas de contenção da imigração surge como um elemento a mais no processo de desgaste de Joe Biden e do Partido Democrata, particularmente junto às comunidades dos estados fronteiriços com o México, como Califórnia, Arizona, Novo México e Texas. O medo da imigração ilegal está sendo trabalhado junto com outros problemas, como a inflação, o aumento do preço dos combustíveis e a guerra da Ucrânia.

As pesquisas eleitorais projetam uma grande derrota do partido democrata nas eleições de novembro de 2022. Mesmo um evento como a guerra na Ucrânia, que normalmente uniria os partidos Democrata e Republicano, contribuindo para o aumento do prestígio do presidente, não conseguiu reverter a impopularidade de Biden, cujas taxas de reprovação giram em torno de 53%, antes e depois do começo da guerra.

Outra questão interessante diz respeito à dificuldade que os democratas podem encontrar na reeleição. A críticas de Kelly e Sinema tentam amenizar o descontentamento de seus eleitores com a revogação do “Title 42”. Nesse aspecto, é importante considerar um outro elemento que irá jogar em favor de uma vitória republicana: o redistritamento. Excetuando na Califórnia, o processo de redistritamento prejudicou os democratas no Arizona, Novo México e Texas. A título de exemplo, no Arizona, pelo mapa de 2010, os democratas asseguravam três cadeiras no congresso e uma outra seria altamente competitiva. As outras cinco eram predominantemente republicanas. Já no mapa de 2022, os democratas perdem um assento para os republicanos. No Novo México, os democratas tinham dois assentos assegurados. O terceiro era altamente competitivo. No novo mapa, os democratas possuem apenas uma cadeira assegurada e os outras duas ficaram competitivas, ou seja, sem uma tendência definida. Já no Texas, além do estado ganhar mais dois assentos no Congresso, o redistritamento foi feito para garantir uma maior competitividade para os candidatos republicanos. Em 2010, eles possuíam 14 distritos fortemente republicanos. Este número saltou para 24, em 2022. Os democratas possuíam 8 assentos garantidos, mas em 2022 saltou para 13. Lá, apenas um distrito é hoje altamente competitivo.

A partir da conjuntura atual, numa perspectiva meramente eleitoral, podemos predizer que a medida de Joe Biden “cobriu um santo para descobrir outro”. Dito de outra forma: quando conseguiu quitar parte de sua dívida eleitoral com os setores progressistas do Partido Democrata, passou a enfrentar uma série de resistências dos setores mais conservadores da sociedade, que temem os efeitos de uma grande onda migratória. Numa era em que as informações “on line” criam uma verdade paralela, este tema será explorado à exaustão pelos setores mais radicais do Partido Republicano.

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