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O leite em pó e a mais recente teoria da conspiração nos Estados Unidos

Marcos Cordeiro / Thais Lacerda | 22/05/2022 14:19 | ANÁLISIS
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A mentira como arma política não é novidade. Bem como a utilização de setores da imprensa para dar credibilidade a eventos falsos ou teorias conspiratórias. Um dos mais célebres exemplos de manipulação política da História ficou conhecido como o “Caso Dreyfus”, em que um oficial francês de origem judaica, o capitão Alfred Dreyfus, foi injustamente condenado por supostamente repassar segredos militares aos alemães. Os debates dividiram a sociedade francesa entre 1894 e 1906, sendo que os setores mais progressistas defendiam a sua inocência e os setores mais conservadores insistiam na culpa de Dreyfus. Depois de ser preso na Guiana Francesa, e de ter sua condenação ratificada, a força da opinião pública levou à sua libertação, em 1899, e à sua reabilitação ao exército, em 1906, depois que a verdade dos fatos veio à luz. 

Outros exemplos podem ser citados, inclusive nos Estados Unidos, quando o Senador Joseph MacCarthy iniciou uma caça às bruxas aos comunistas no pós-II Guerra ao perseguir diversos intelectuais e artistas, dentre eles, Charles Chaplin, que teve que deixar o país. Mais recentemente, uma teoria conspiratória difundida pela Internet conhecida como Q-Anon mobiliza amplos setores do Partido Republicano, tornando seus crentes em uma força política considerável no partido.

De acordo com essa crença, o Partido Democrata abriga uma cabala secreta formada por adoradores de Satanás, pedófilos e canibais, que dirige uma rede global de tráfico sexual infantil e que esteve conspirando contra o ex-presidente Donald Trump e os seus apoiadores. A conspiração teria sido engendrada com base no plano secreto denominado “Estado Profundo” (Deep State). Esta teoria conspiracionista teria surgido em outubro de 2017 na Internet por meio de um post escrito por um indivíduo anônimo, presumivelmente norte-americano, e que usava o pseudônimo de “Q”, o qual passou a ser compartilhado por diversas pessoas até viralizar nas redes sociais. “Q” alegava ter acesso a informações classificadas sobre oponentes do governo Trump e acusou (falsamente) muitos atores liberais de Hollywood, políticos democratas e altos funcionários de se envolverem em um círculo internacional de tráfico sexual de crianças.

Os apoiadores da teoria Q-Anon ganharam muito espaço no partido Republicano a tal ponto de eleger uma bancada de congressistas, cujo expoente é a deputada Marjorie Taylor Greene (R-GA), que se notabiliza por discursos baseados em “memes” e teorias conspiratórias, como a de associar a iniciativa Build Back Better, que busca substituir as energias fósseis por fontes renováveis nos Estados Unidos, a uma estratégia de capitulação do governo Biden aos interesses chineses em vender seus equipamentos de geração solar ou eólica, liquidando assim a independência energética do país.

A mais recente manipulação que está polemizando a sociedade estadunidense diz respeito ao problema de suprimento de leite em pó para os bebês, conhecidos no país como “baby formula”. Por conta disso, as deputadas republicanas Kat Cammack (FL) e Elise Stefanik (NY) criaram uma falsa alegação de que a carência do produto nas prateleiras dos supermercados e farmácias se devia ao fato de que o Governo Biden priorizou os filhos de famílias de imigrantes ilegais que aguardam por refúgio em acampamentos ao longo da fronteira com o México. Com isso, os pais dos bebês americanos ficaram sem acesso ao produto. Nas redes sociais, Kat Cammack publicou uma montagem de imagens na qual exibia uma suposta fotografia do estoque de leite em pó no Centro de Detenção de Imigrantes de Ursula e outra foto com uma prateleira vazia num mercado estadunidense. Veja-se o printscreen do post no Twitter a seguir::
 


Esta teoria conspiratória está mobilizando a opinião pública. Os jornais “The New York Times”, o “The Washington Post”, “Floridian Press”, “Fox Business”, dentre muitos outros. Mesmo Nancy Pelosi, presidente da Casa dos Representantes, foi instada a participar do debate. Em entrevista a George Stephanopoulos, rede ABC, ela foi confrontada com a escassez de leite em pó e as críticas da deputada Elise Stefanik (R-NY) sobre o suprimento de crianças em campos de detenção de imigrantes. Segundo Pelosi: “Como de costume, sua declaração é totalmente irresponsável. Os bebês estão chorando. Precisamos levar comida para eles. (...) o que estamos fazendo esta semana no Congresso é, novamente, Bobby Scott, presidente do Comitê de Educação e Trabalho, essa é a jurisdição – que reduzirá alguns dos regulamentos etc., para que seja mais fácil para comprá-lo. Cinquenta por cento do — do WIC (programa Mulheres, Bebés e Crianças) [é utilizado para comprar alimentos]. A deputada Rosa DeLauro, a Presidente do Comitê de Dotações de Agricultura, está trabalhando nisso para ter algum financiamento para que possamos comprar imediatamente, no exterior – há quatro países, Chile, México, Irlanda e Holanda, que têm suprimentos que podem estar disponíveis para nós.”

O tema do leite em pó está sendo útil para que os opositores de Biden consigam atacar o governo em três frentes: (1) inflação; (02) imigração; e (3) desabastecimento. Com relação ao primeiro problema, o aumento dos preços no país é o maior desde a crise provocada pelos choques de petróleo na década de 1970. Em abril de 2022, o índice de inflação anualizado estava em 8,3%. O aumento nos preços dos combustíveis e dos alimentos impacta fortemente as famílias de menor renda, faixa em que se encontram os grupos minoritários, como negros e latinos/hispânicos. No entanto, os efeitos são sentidos por todas as classes sociais, fato que influencia de forma negativa a aprovação de Joe Biden e do Partido Democrata.

O tema imigração também é muito polêmico. Enquanto os eleitores latinos esperam que o governo avance na flexibilização das regras, os republicanos buscam bloquear o acesso de uma nova onda de refugiados vindos do México, Cuba e do Triângulo Norte da América Central. A maioria conservadora na Suprema Corte está impondo derrotas consecutivas ao governo Biden sobre este assunto. O Senado, onde os democratas possuem uma maioria instável, também é fonte de frustrações, pois pouco avança aprovar uma legislação que possa flexibilizar as regras e legalizar as pessoas indocumentadas. Por fim, o problema do desabastecimento, como o que afeta o suprimento de leite em pó para os bebês. 
A pandemia de Covid-19 desorganizou diversas cadeias produtivas, como no caso do suprimento de semicondutores para diversos setores industriais, com destaque para o automobilístico. No caso específico da oferta de laticínios, a grande demanda por leite em pó no começo da pandemia desorganizou a produção, pois no momento seguinte à grande estocagem de produtos pelas famílias, a demanda caiu fortemente, fato que levou a paralisação de linhas de produção. Com o fim das medidas restritivas na pandemia e a retomada dos números de partos, houve um crescimento da procura mas as empresas ainda não conseguiram normalizar a produção.

Frente às dificuldades enfrentadas pela economia estadunidense e as críticas que o governo sofre por conta da conjuntura atual, Nancy Pelosi, em 13 de maio, enviou um press release aos seus colegas do Partido Democrata, no qual abordou a questão da falta de bens de consumo: “A emergência do leite em pó também serve como um lembrete crítico da necessidade urgente de investir no fortalecimento de nossas cadeias de suprimentos. Na semana passada, o Congresso iniciou um trabalho bipartidário e bicameral para montar nossa legislação final do ‘America COMPETES’, que entregará investimentos transformadores para reduzir interrupções e reduzir custos [na produção] dos bens essenciais de que as famílias americanas precisam. Para as famílias americanas e a economia americana, é vital que levemos esse pacote de redução de custos da cadeia de suprimentos à mesa do presidente.”

Chama atenção no episódio o fato de como um evento político aparentemente de menor gravidade adquiriu grandes proporções no debate eleitoral devido à utilização de meias verdades ou de fake news para impulsionar candidaturas políticas justamente quando ocorrem as primárias dos dois principais partidos. Para as pessoas de intelectual mediano, soa absurdo imaginar que o suprimento de leite em pó para algumas centenas de bebês de imigrantes aprisionados em campos de detenção na fronteira com o México seja o responsável pela carência do produto para mais de 3,5 milhões de bebês estadunidenses. No entanto, para o segmento que se alimenta de teorias conspiratórias, como o Q-Anon, isso não tem importância, pois não se trata de uma questão racional ou quantitativa, mas de um elemento que se soma aos preconceitos enraizados na população que se assume como republicana.

Nesta narrativa, que simultaneamente acusa o governo Biden de colocar aos estadunidenses em “último lugar” (lembrando que Donald Trump utiliza o slogan “América First”) ao mesmo tempo em que desumaniza os imigrantes, mesmo os bebês, cria-se uma falsa contradição entre os direitos do bebê nacional frente ao do bebê “alienígena”. Nesse aspecto, vale a pena observar que a grande mídia conservadora também impulsionou o debate de sobre uma notícia falsa. Merece destaque o grupo de mídia News Corp, do magnata Rupert Murdoch, que está na linha de frente dessa empreitada. Este grupo multinacional de mídia controla um dos mais antigos jornais dos Estados Unidos, o New York Post, e a Fox Corporation, que gerencia a rede de televisão Fox News. 

Há um mecanismo maquiavélico nesse procedimento. Para o escândalo do leite em pó e para outros temas, as mídias tradicionais potencializam falsos escândalos criadas nas mídias sociais, dando credibilidade às mentiras junto à uma maior parcela da população. Veja o New York Post: “Centro de detenção fronteiriço parece abastecido com fórmula infantil apesar da escassez” e a Fox News: “Representante do Partido Republicano diz que imigrantes ilegais recebem 'paletes' de leite em pó difíceis de se encontrar. A alegação de Cammack ocorre quando os pais americanos se preocupam com a falta de leite em pó para seus bebês”. 

Acerca deste debate, vale a pena ler o site de verificação de notícias Snopes, em que analisa e desmitifica os argumentos dos republicanos em torno da polêmica sobre leite em pó e centros de detenção de imigrantes.

Do ponto de vista de nossa análise, é importante compreender não apenas o mecanismo da criação das fake news, mas principalmente de como um assunto menor se converte em um tema que mobiliza a imprensa e as redes sociais, e que forçou a Presidente da Casa dos Representantes a se posicionar. Para os criadores da falsa conexão entre imigração e falta de leite em pó, a tática foi extremamente bem-sucedida, pois colocou o governo Biden na defensiva frente a um problema do qual ele de fato não pode ser acusado de negligência, pois a lei dos Estados Unidos garante o direito à alimentação das pessoas detentas sob a custódia do Estado, inclusive bebês, da mesma forma que a inflação que aflige diversos países do mundo. Nesse aspecto, os estrategistas republicanos marcaram mais um ponto diante dos democratas, cujo prestígio está em declínio desde a posse de Joe Biden em janeiro de 2021. Por fim, merece destaque o fato de que a grande imprensa conservadora renunciou a qualquer postura objetiva ou neutra em favor da conquista do poder político por parte de seu partido de predileção. Nesse jogo, a vida dos imigrantes pouco importa.

P.S. Após concluirmos nossa análise, nos deparamos com um novo movimento sobre essa crise. De acordo com o New York Times, em 18 de maio, Joe Biden tomou medidas urgentes na quarta-feira para resolver a escassez de leite em pó em todo o país, invocando a Lei de Produção de Defesa para aumentar a produção e criando a “Operação Fly Formula” para disponibilizar aviões do Departamento de Defesa e acelerar a importação do produto para os Estados Unidos. A Casa Branca anunciou seu plano apenas horas antes de a Câmara tomar suas próprias medidas, aprovando uma verba emergencial de US$ 28 milhões para a Food and Drug Administration (FDA) e um projeto de lei para afrouxar as restrições sobre qual tipo de leite em pó que pode ser comprado por meio do programa federal de ajuda alimentar para mulheres e bebês.

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