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Os impactos políticos e sociais das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos em junho de 2022

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 09/07/2022 10:33 | ANÁLISIS
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Nas duas últimas semanas de junho a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu diversas questões que afetam profundamente a sociedade estadunidense. Em 23 de junho, decidiu em favor dos proprietários de armas do estado de Nova York em portá-las em público e em locais fechados no caso “New York State Rifle & Pistol Assn., Inc. v. Bruen”. Em 24 de junho adotou a medida mais polêmica, pois decidiu a favor do Mississippi Department of Health no caso “Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization” que questionava a decisão de 1973 que permitiu o aborto legal em todos os estados do país, a conhecida decisão Wade vs. Roe. Em 30 de junho, foram divulgadas duas decisões também polêmicas. Na primeira, no caso “Biden vc. Texas”, foi decidido que a rescisão do Governo dos Protocolos de Proteção aos Migrantes não violou a seção 1225 da Lei de Imigração e Nacionalidade, acabando com a política conhecida como “Remain in Mexico” para os requerentes de asilo nos Estados Unidos. Na segunda, no caso “West Virginia vs. EPA”, a Suprema Corte retirou da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) a autoridade para definir políticas de limitação de emissão de poluentes, como aquele que a EPA adotou no Plano de Energia Limpa. No balanço das quatro definições, o governo Biden sofreu três derrotas e teve apenas um êxito. As decisões da Suprema Corte têm impacto abrangente para a população dos Estados Unidos, mas repercutem de forma específica sobre a comunidade de origem latina no país, tal como discutiremos a seguir.

“New York State Rifle & Pistol Assn., Inc. v. Bruen”: o direito de portar armas em público

A decisão da Suprema Corte que derrubou uma lei que impõe restrições sobre o porte público de armas do estado de Nova York, que foi promulgada há mais de um século, marca uma reviravolta na expansão dos direitos de proprietários de armas nos estados Unidos em uma década. De acordo com a CNN, o juiz Clarence Thomaz, ao defender sua opinião, disse que “daqui para frente o governo pode não simplesmente postular que o regulamento promove um interesse importante. Somente se um regulamento sobre armas de fogo for consistente com a tradição histórica desta nação, um tribunal pode concluir que a conduta do indivíduo está fora do comando não qualificado da Segunda Emenda”.

A restrição à venda e ao porte de armas de fogo é um tema muito controverso nos Estados Unidos. Em abril, o Pew Research Center divulgou uma pesquisa em que mostra a grande divisão entre os cidadãos do país: “Em uma era marcada por profundas divisões entre republicanos e democratas, poucas questões são tão politicamente polarizadoras quanto a política de armas. Hoje, pouco mais da metade dos americanos (53%) dizem que as leis sobre armas deveriam ser mais rígidas do que são atualmente, uma opinião defendida por 81% dos democratas e independentes de tendência democrata, mas apenas 20% dos republicanos e simpatizantes dos republicanos. Da mesma forma, enquanto quase três quartos dos democratas (73%) dizem que dificultar a obtenção legal de armas levaria a menos tiroteios em massa, apenas 20% dos republicanos dizem isso, com a maioria (65%) dizendo que isso não teria efeito.” 

É importante mencionar que a sociedade estadunidense vem sendo abalada por sucessivos tiroteios que resultam em mortes em todo o país. A comunidade latina/hispânica ainda está chocada com o massacre em Uvalde, ocorrido em 24 de maio de 2022, quando Salvador Ramos, de 18 anos, abriu fogo na escola primária Robb em Uvalde, Texas, matando 21 pessoas. Das pessoas mortas a tiros, 19 eram crianças e dois adultos. Todos os mortos tinham ascendência latina. Outros grupos minoritários como negros e judeus também foram vítimas de atentados, como o ocorrido em Buffalo, em maio deste ano, e na Pittsburgh, em 2018. Os atentados a armas estão se tornando uma epidemia nos Estados Unidos. De acordo com o portal “Gun Violence Archive”, ocorreram 692 tiroteios em massa em 2021. Até o começo de julho de 2022, ocorreram mais de 300 eventos, incluídos os dois massacres verificados no feriado de 04 de julho em Illinois e na Philadelphia.

Para metade da população (democratas), os incidentes ocorrem por conta do acesso indiscriminado às armas, principalmente os rifles de assalto, cujo uso é indicado para guerras. A outra metade (republicanos) associa a violência ao comportamento dos indivíduos, já que o direito à posse de armas remonta ao século XVIII e não se verificava eventos desse tipo até tempos recentes. No momento que o governo Biden conseguiu aprovar uma legislação bipartidária para controlar a venda de armas de assalto, a decisão da Suprema Corte que libera o porte de armas em público e em locais fechados caiu como um balde de água fria sobre aqueles que buscavam controlar a epidemia de tiroteios.

“West Virginia vs. EPA”: a Agência de Proteção Ambiental não pode impor normas para as termelétricas

Os impactos das mudanças climáticas e da degradação do meio sobre as comunidades latinas foram tratados pelo Latino Observatory em 06 de fevereiro de 2022. Naquele momento, nós chamamos atenção de como a mudança climática prejudicava especialmente os estados que abrigam grande contingente de latinos, como a Califórnia, Novo México, Texas, Arizona e Flórida. A vida cotidiana e as atividades econômicas dessas populações estão sendo impactadas por secas prolongadas, incêndios florestais, furacões, poluição do ar etc. Por conta disso, o tema ambiental é importante para a comunidade latina. A notícia da derrubada de uma norma federal prevista no Plano de Energia Limpa (CPP, na sigla em inglês) que visava mitigar as emissões de CO2 e apoiar fontes energéticas limpas causou grande desilusão.

O CPP foi proposto pela EPA em 2015, durante o governo de Barack Obama. Entre as disposições, o CPP incluiu regulamentação sobre o funcionamento de usinas de geração de energia, principalmente aquelas movidas por carvão, para implementar a tecnologia de redução de emissões e incentivar fontes de geração de energias limpas, como a solar e a eólica.

Essa medida contrariava o interesse de empresas e de estados produtores de carvão e petróleo. Desde sua divulgação, a norma do CCP foi contestada, alegando que a EPA não possuía legitimidade para regular as termelétricas. A norma não entrou em vigor por conta das ações jurídicas movidas por empresas e estados desde então. O caso chegou à Suprema Corte por iniciativa do estado de West Virgínia, o segundo produtor de carvão, atrás de Wyoming. Vale destacar que o plano ambiental proposto por Biden dentro da iniciativa Build Back Better World (B3W), teve sua aprovação bloqueada no Senado com o decisivo voto de Joe Manchin, democrata de West Virgínia. A decisão da Suprema Corte, de 30 de junho, indicou que a EPA não pode regulamentar as termelétricas existentes, uma vez que o Congresso não lhe concedeu esta prerrogativa. 

Estados que possuem legislações específicas para o controle de emissões de CO2 não serão afetados. No entanto, esta decisão da Suprema Corte inviabiliza uma estratégia global para que os Estados Unidos possam cumprir seus compromissos assumidos no Acordo de Paris. 

Acerca da posição da Suprema Corte, vale a pena citar o Procurador-Geral da California, Rob Bonta, que classificou a decisão como “equivocada e gravemente decepcionante”. De acordo com ele, “Estamos correndo contra o relógio na luta contra as mudanças climáticas e precisamos que todos os níveis de governo trabalhem juntos para agir antes que seja tarde demais. Na Califórnia, temos programas fortes para lidar com as mudanças climáticas e não vamos voltar atrás. Com o futuro do nosso planeta em jogo, nosso compromisso de enfrentar a crise climática não pode vacilar.”

O presidente do Congressional Hispanic Caucus, Raul Ruiz, emitiu uma nota sobre o tema. “A decisão de hoje dos juízes de direita na Suprema Corte interrompe anos de progresso em direção a um ar mais limpo e resposta às mudanças climáticas. A decisão Suprema Corte direitista de restringir a autoridade da EPA para regular as emissões de carbono de usinas de energia prejudicará desproporcionalmente as comunidades carentes. Isso tornará o ar que nossos filhos respiram mais sujo e aumentará as taxas de asma em nossas comunidades. Nosso planeta não pode esperar. Nossas comunidades não podem esperar. As gerações futuras não podem esperar. O Congressional Hispanic Caucus (CHC) continuará lutando com urgência para aprovar uma legislação de justiça ambiental que proteja as comunidades que já sofrem o impacto das mudanças climáticas e do aumento das emissões de gases de efeito estufa." 

“Biden vs. Texas” –  O fim da política “Remain in Mexico”

O tema da política “Remain in México” foi tratada em nosso Latino Observatory, em 8 de dezembro de 2021, quando mencionamos a grande frustração dos eleitores com o governo Biden por seu imobilismo em superar as medidas restritivas à imigração criadas durante o governo de Donald Trump, dentre elas a medida conhecida como “Remain in Mexico”. Em 24 de agosto de 2021, a Suprema Corte negou o pedido de emergência do Departamento de Justiça para suspender a decisão de um tribunal inferior exigindo que o governo voltasse a adotar a política de imigração da era Trump, a que força requerentes de asilo a esperar no México por uma audiência nos Estados Unidos. O governo Biden tentou contornar esta determinação, mas foi obrigado a reinstituir a política no começo de dezembro do ano passado. 

Este tema também provocou tensões com o governo do México, uma vez que muitos dos requerentes de asilo eram cidadãos dos países do chamado “Triângulo Norte da América Central”, El Salvador, Honduras e Guatemala, que se alojavam em acampamentos precários nas cidades fronteiriças com os Estados Unidos, como Tijuana, Nuevo Laredo, Ciudad Juarez, Nogales, Sonora, etc.

A decisão da Suprema Corte atende a parte das demandas da comunidade latino/hispânica no país, pois ainda continua em vigor uma outra medida restritiva, o chamado Título 42, uma lei sanitária editada durante a Segunda Guerra Mundial que restringia o deslocamento de pessoas com vistas a impedir a disseminação de doenças. Em abril de 2022 o governo Biden tentou flexibilizá-la, mas foi barrado pela Suprema Corte. Esta medida foi amplamente utilizada como motivo para expulsar imigrantes ilegais durante a pandemia de Covid-19, se bem que Trump se preocupava mais com a imigração do que com o coronavírus.

Os defensores de uma imigração mais humana aplaudiram a decisão da Suprema Corte. O site Latino Rebels listou algumas lideranças que se manifestaram por meio do Twitter para comemorar o fim da política “Remain in Mexico”, dentre elas o deputado democrata da Califórnia Raúl Grijalva, que postou no Twitter que “a decisão da Suprema Corte de permitir que o governo Biden encerre o “Remain in Mexico” é um alívio em uma semana de casos sem precedentes, mas isso não muda o fato de que milhares de migrantes permanecem expostos a condições perigosas como resultado dessa política cruel.” 

Vale a pena levar em conta que esta medida tenderá a acirrar os ânimos nos estados fronteiriços com o México como o Texas, Arizona e Novo México, onde parte da população rejeita qualquer flexibilização na política migratória, inclusive entre os moradores de origem latina. A deputada republicana Mayra Flores conseguiu vencer no condado de San Antonio na eleição especial de junho com um forte discurso anti-imigração.

“Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization”: O direito ao aborto em xeque

Entre as decisões de junho da Suprema Corte, a que foi mais contestada diz respeito à anulação do direito ao aborto, tal como foi garantido no caso Wade vs. Roe, de 1973. Os políticos vinculados ao Partido Democrata lamentaram a decisão. Os republicanos comemoraram. Os grupos de mídia se dividiram a partir de suas linhas editoriais. Enquanto a CNN criticava a decisão de seis juízes, a Fox News exaltava a coragem dos conservadores que souberam resistir à pressão de grupos organizados.

Apesar de controversa, a maioria dos estadunidenses apoia o direito do aborto. A pesquisa da Pew Research Center aponta que 61% da população apoio o direito à interrupção da gravidez. Já 37% são contrários. Os estados de maioria republicana concentram a maioria dos críticos desta prática, enquanto os estados majoritariamente democratas apoiam a manutenção do direito.

De acordo com o The New York Times, de 27 de junho, os estados governados por republicanos iniciaram um maior ativismo para restringir o aborto frente à expectativa, depois confirmada, da derrota da decisão Roe vs. Wade. Na Flórida, em Oklahoma, Mississipi, Kentucky e Texas, entre outros, estão avançando para restringir ainda mais a possibilidade de escolha das mulheres depois da decisão da Suprema Corte. Na Flórida, o governador Ron DeSantis da Flórida assinou, em junho, uma lei que proíbe a maioria dos abortos após 15 semanas de gravidez, fato que restringe severamente o acesso ao procedimento.

Em sentido inverso caminham os estados democratas, como a California, Connecticut e Washington-DC. Especificamente na Califórnia, uma proposta lançada no final de 2021, que conta com o apoio do governador Gavin Newsom e dos líderes das duas câmaras legislativas, propõe o aumento do financiamento para provedores de aborto, reduzindo as barreiras administrativas ao acesso a abortos e fortalecendo as proteções legais para pacientes que interrompem a gravidez.

A restrição ao aborto impacta de forma diferente as classes sociais e os distintos grupos étnicos. Novamente, de acordo com a pesquisa do Pew Research Center, as mulheres afro-americanas e latino/hispânicas são aquelas que proporcionalmente mais recorrem ao procedimento. De acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), com dados de 29 estados e do Distrito de Columbia, recolhidos em 2019, a taxa de aborto, entre as idades de 15 a 44 anos, foi substancialmente maior entre as mulheres de minorias étnicas. A taxa entre as mulheres negras não hispânicas foi de 23,8 abortos por 1.000; foram 11,7 abortos por 1.000 mulheres hispânicas; 6,6 abortos por 1.000 mulheres brancas não hispânicas; e 13 abortos por 1.000 mulheres de outras raças ou etnias.

Especificamente para as mulheres latinas que vivem em estados como a Flórida e Texas, a restrição ao aborto é visto como preocupante, pois elas se encontram nos grupos com menor renda per capita nesses estados e não teriam recursos para se deslocar para estados onde a prática é permitida e, menos ainda, para pagar os caros procedimentos que caracterizam a medicina dos Estados Unidos. 

Concluindo esta análise, as decisões da Suprema Corte do mês de junho, majoritariamente conservadoras, estão incendiando a opinião pública progressista por receio de que outras políticas públicas possam ser revertidas, não apenas o direito ao aborto, a restrição do porte de armas, ou com relação a uma legislação ambiental que enfrente os impactos da mudança climática. Podem avançar sobre a separação entre Igreja e Estado, as políticas de ação afirmativas ou ainda de assistência social, como o Obamacare. Por conta disso, os democratas estão ampliando a repercussão dessas decisões e estão exortando a população para se mobilizar e eleger congressistas comprometidos com os direitos das mulheres, das minorias, do meio ambiente e em favor de políticas assistenciais. Nesse aspecto, é importante citar o comentário de Joe Biden acerca da decisão da Suprema Corte que acabou com a norma “Roe vs. Wade”:

“Deixe-me ser muito claro e inequívoco: a única maneira de garantir o direito de escolha de uma mulher e o equilíbrio que existia é o Congresso restaurar as proteções de Roe vs. Wade como lei federal. Nenhuma ação executiva do presidente pode fazer isso. E se o Congresso, ao que parece, não tem votação – votos para fazer isso agora, os eleitores precisam fazer suas vozes serem ouvidas. Neste outono, devemos eleger mais senadoras e representantes que codificarão o direito da mulher de escolher em lei federal mais uma vez, eleger mais líderes estaduais para proteger esse direito em nível local. Precisamos restaurar as proteções de Roe como lei da terra. Precisamos eleger funcionários que farão isso. Neste outono, Roe está nas urnas. As liberdades pessoais estão nas urnas. O direito à privacidade, liberdade, igualdade, estão todos na cédula. Até lá, farei tudo o que estiver ao meu alcance para proteger os direitos das mulheres nos estados onde enfrentarão as consequências da decisão de hoje.”

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