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A guerra cultural e os Latinos

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 30/04/2022 16:54 | Análises
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A polarização política nos Estados Unidos está cada vez mais acentuada. Em 26 de abril, o The New York Times destacou a mudança e postura política da governadora do Alabama, que deixou de ser uma conservadora austera para se tornar uma entusiasta das ideias da extrema direita. De acordo com o NYT: “Gov. Kay Ivey do Alabama nunca foi uma republicana moderada. Mas em 2018, quando concorreu a seu primeiro mandato completo, ela mergulhou habilmente em pontos de discussão conservadores de maneira suave. Quatro anos depois, quando está concorrendo e à reeleição, ela está novamente exibindo anúncios com músicas adequadas para seriados familiares dos anos 1990. Mas a mensagem, no entanto, é muito diferente. Em um anúncio, Ivey afirma que ‘a esquerda ensina as crianças a odiar a América’. Mais tarde, ela se gaba de ter acabado com os ‘esportes transgêneros’ nas escolas do Alabama. Em outro anúncio, ela acusa falsamente o presidente Biden de ‘enviar imigrantes ilegais’ para o país, alertando que ‘todos teremos que aprender espanhol’. Ivey abandonou sua imagem de conservadora tradicional do Alabama – liderando a acusação de leis restritivas ao aborto e protegendo monumentos confederados – e se transformou em uma guerreira cultural da era Trump”.

A mudança da postura da governadora Kay Ivey ocorre justamente quando ela enfrenta candidatos de seu partido que se posicionam cada vez mais à direita. Eles abraçam as teses da teoria conspiratória QAnon. Considerando a situação política atual do Partido Republicano, para um candidato se tornar competitivo, ele precisa se mostrar muito mais conservador e aguerrido, tal como demonstra a experiência da primeira deputada assumidamente QAnon, Marjorie Taylor Greene (R-GA), cuja atuação radical e estridente tem inspirado muitos candidatos nas primárias de 2022.

Outra situação que merece destaque pelo seu radicalismo ocorreu no Legislativo Estadual da Flórida, quando aprovou uma lei que retira benefícios tributários do Grupo Disney, cujo valor alcança um bilhão de dólares. A medida é uma retaliação dos republicanos contra a Disney por seu posicionamento contra a lei “Don't Say Gay”, que restringe o que as escolas podem dizer sobre gênero e limita severamente a capacidade de os educadores ao aconselhar estudantes nesse aspecto sem o consentimento dos pais, e abriu a porta para que pais possam processar as escolas por violações de regras vagamente definidas. Paul Krugman, que foi agraciado com o prêmio Nobel, chamou atenção para o absurdo da posição dos republicanos nesse caso. Segundo ele, em artigo no The New York Times, “o ataque à Disney foi muito além da represália financeira: de repente, Mickey Mouse faz parte de uma vasta conspiração. O vice-governador da Flórida foi ao Newsmax acusar a Disney de ‘doutrinar’ e ‘sexualizar crianças’ com sua ‘agenda não secreta’. Se isso parece loucura – o que é – também é cada vez mais a norma republicana. Eu acho que a reportagem política não percebeu o quão completamente ‘QAnonizado’ o Partido Republicano se tornou.”

É importante ressaltar que em muitos aspectos a sociedade estadunidense se posiciona de forma mais liberal em diversos aspectos. O Pew Research Center, em 2019, realizou uma série de enquetes sobre temas polêmicos, como a liberação do consumo de maconha, o casamento homoafetivo e religiosidade. De acordo com o instituto, dois terços dos adultos americanos agora apoiam a legalização. Em 2010, menos da metade (41%) o fazia. A mudança no sentimento público foi acompanhada por uma mudança no cenário legal: desde 2019, 11 estados e o Distrito de Columbia legalizaram pequenas quantidades de maconha para uso recreativo adulto, enquanto muitos outros a legalizaram para uso médico. A droga continua ilegal sob a lei federal. 

Já o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem o apoio da maioria dos adultos norte-americanos, já que 61% são a favor de que gays e lésbicas se casem legalmente. Em 2015, a Suprema Corte dos EUA emitiu sua decisão histórica Obergefell v. Hodges, que estabeleceu que casais do mesmo sexo têm o direito constitucional de se casar. 

Do ponto de vista da religiosidade, tornou-se mais comum que os americanos frequentem a igreja algumas vezes por ano ou menos (54%) do que mensalmente ou mais (45%). Além disso, desde 2009, a parcela de americanos que descreve sua identidade religiosa como ateu, agnóstico ou “nada em particular” cresceu de 17% para 26%. Em contrapartida, a parcela daqueles que se descrevem como cristãos caiu de 77% para 65%.

Tais mudanças tão profundas na opinião pública dos Estados Unidos tendem a criar um forte ressentimento entre as parcelas mais conservadoras da sociedade. Daí a oportunidade que surgiu para a extrema direita se aproveitar do medo para arrebanhar as populações de estados mais rurais e os subúrbios de maioria branca. As teorias conspiratórias se tornam eficientes porque exploram o subconsciente coletivo e prometem o conforto de um passado idealizado.

A guerra cultural travada pela extrema-direita por meio das redes sociais e pela difusão de Fake News está acuando setores do Partido Democrata, principalmente aqueles que estão em estados majoritariamente republicanos ou nos “swing states”, como o Arizona, a Flórida ou Nevada, onde existe uma expressiva parcela de população de origem latina/hispânica. Em aspectos culturais, os latinos são muito conservadores, como em religiosidade e o casamento de pessoas do mesmo sexo.

O deputado democrata Ruben Gallego, do 7º Distrito do Arizona, criticou colegas de seu partido por tratarem os latinos da mesma forma que tratam os “liberais brancos”. Ele fez esta declaração no podcast “Playbook Deep Dive” do “Politico”, em 22 de abril. Segundo Gallego, “Nós realmente não falamos sobre o sonho americano para os latinos; falamos com eles como falamos com liberais brancos. Mas eles não são liberais brancos! Os latinos querem ser ricos, querem ter sucesso, querem ter segurança, querem ter empregos, querem todas essas coisas. Um bando de grandes doadores [que] são todos liberais brancos acaba contratando consultores liberais, [que] acabam contratando outros consultores latinos muito liberais. E todos eles se retroalimentam.”

A despeito dessas posições, o deputado Ruben Gallego pode ser considerado da ala progressista do Partido Democrata, pois ele defende as principais teses do partido, como a legalização da maconha, ampliação da assistência pública à saúde, a restrição do porte de armas, os direitos da comunidade LGBTQIA+ nas forças armadas, etc. Nas eleições de 2020, Gallego recebeu 75% dos votos em seu distrito, o que mostra sua representatividade em meio aos eleitores de sua comunidade. Mas, independentemente disso, ele avalia que a mera transposição das pautas gerais que mobilizam a juventude e os setores mais liberais da elite branca, não ajuda a mobilizar a população latina de forma geral, principalmente aqueles que estão na base da pirâmide social ou que ainda se encontram indocumentados.

Um dos temas que incendeia a “guerra cultural” entre democratas e republicanos é a questão de “gênero”. Para os republicanos, a classificação sexual das pessoas é binária (masculino-feminino). Não admitem, como o fazem extensos segmentos dos democratas, que entendem que a identidade de gênero depende da orientação de cada pessoa e não apenas da biologia. Mencionamos aqui que a senadora Marsha Blackburn (R-TN), durante a audiência de nomeação da juíza Ketanji Brown Jackson, constrangeu a candidata ao perguntar como ela definia a condição de “mulher”, ao que respondeu que não era bióloga.

Ainda nesta disputa de narrativas entre progressistas e conservadores podemos incluir a própria utilização da linguagem, não apenas para superar preconceitos implícitos em determinadas palavras que trazem consigo conteúdos racistas, misóginos ou preconceituosos, como também na flexão dos pronomes com vistas a encontrar uma certa “neutralidade” de gênero, notadamente em idiomas em que a definição do gênero é definida pela última vogal, no caso o “a” ou o “o”. Daí surgem variações que incluem o “e” no final das palavras, como em “TODES” ao invés de “todas” ou ‘todos”. No caso específico da comunidade latina/hispânica, a solução encontrada pelos defensores da neutralidade de gênero foi introduzir a expressão “LATINX”, cuja utilização se concentra em certos setores universitários, em círculos culturais e na mídia mais segmentada.

Na edição de 13 de fevereiro deste Latino Observatory, mencionamos a pesquisa realizada pela Bendixen & Amandi International, de orientação Democrata especializada em publicações para a comunidade latina, que investigou melhor as percepções sobre os termos que melhor definem a comunidade. Em novembro de 2021, os pesquisadores perguntaram a 800 pessoas de diferentes faixas etárias (hispânicos/latinos) qual termo estaria mais próximo em descrever sua origem étnica. Na média geral dos adultos entrevistados, 2% disseram preferir o termo “latinx”, 68% votaram pelo termo “hispânico” ou “hispânica”, enquanto 21% escolheram “latino” ou “latina”, independentemente se nascidos ou não nos Estados Unidos. Nota-se que dentre aqueles que escolheram o termo “latino”, quase o dobro nasceu no exterior.

Em meio à guerra cultural que polariza a sociedade estadunidense, parece ser difícil encontrar algum ponto de conciliação entre as posições que estão profundamente entrincheiradas. Nesse aspecto, a preocupação manifestada pelo deputado Ruben Gallego parte do pressuposto de que o eleitorado latino pode ser “fisgado” pelos discursos pró-família e pró-valores tradicionais defendidos pelos republicanos. A tradição, mesmo que inventada, traz um certo conforto para pessoas que estão confusas em meio a um cenário de fortes mudanças tecnológicas, culturais e econômicas. Daí a sagacidade do discurso de Donald Trump de “Make America Great Again”, que remete a um país com pleno emprego e elevados salários para os trabalhadores comuns, diferentemente da situação de insegurança e precariedade que marca a economia atual.

Neste quadro, em que a inflação corrói profundamente a renda das classes mais baixas e a guerra na Ucrânia traz incertezas e insegurança, o discurso mais identitário dos progressistas do Partido Democrata pode ter pouca eficiência na tentativa de mobilizar eleitores para as eleições de meio de mandato. Tanto nos Estados Unidos, como no Brasil, esse tipo de discurso reforça apenas as convicções de quem já está convencido, mas não consegue alcançar um público mais amplo. Nesse sentido, as frustrações com as promessas não cumpridas de Biden são um elemento a mais da equação que aponta para uma acachapante derrota dos democratas em novembro de 2022.

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