No século XVIII, muitas famílias estadunidenses viam novas crianças como futuros trabalhadores que garantiriam o sustento da casa quando os pais já não tivessem a capacidade física do trabalho. Aos cinco anos de idade, crianças ajudavam em trabalhos agrícolas e domésticos. Famílias muito numerosas, muitas vezes, não encontravam ofícios para as crianças e mandavam-nas para agregados familiares que pudessem colocá-las como trabalhadoras domésticas, criadas ou lavradoras. O 9° Censo dos Estados Unidos, em 1870, contabilizou 1 a cada 8 crianças como empregadas. Trinta anos depois, em 1900, o número subiu para 1 a cada 5 crianças.
Um dos pais fundadores dos Estados Unidos, Alexander Hamilton, observou em um relatório de 1791, quando era Secretário do Tesouro, que as crianças seriam uma mão-de-obra barata e, caso não contribuíssem com os trabalhos, ficariam ociosas. Após a Guerra Civil, o número de crianças trabalhadoras aumentaria ainda mais. O “trabalho-livre” não era muito claro quando o assunto era as crianças recém-libertadas e, em muitos casos, as crianças eram novamente escravizadas por meio de acordos de aprendizagem que vinculavam as crianças aos antigos senhores.
Em 1873, o The New York Times afirmou que “o mundo desistiu de roubar homens da costa africana, apenas para raptar crianças da Itália”. De fato, o trabalho de crianças migrantes, como as italianas, tinha se tornado comum e altamente praticado. As operações dos “padrones” italianos - pessoas que garantiam empregos, em especial, para imigrantes italianos - utilizava o trabalho escravo infantil com a justificativa de garantir a aprendizagem, como observamos anteriormente. Crianças que não cumpriam os acordos geralmente eram espancadas. Desde o início, as crianças migrantes são os principais alvos do trabalho infantil análogo a escravidão.
Após a Grande Depressão, o número de crianças em tais condições começa a diminuir. Com a diminuição dos empregos disponíveis, os adultos, principalmente homens, precisaram assumir cargos que antes pertenciam às crianças. Posteriormente, as máquinas e tecnologias industriais passaram a uma complexidade maior e tornou-se mais inacessível para crianças. Em 1938, foi aprovado o FairLabor Standards Act e, legalmente, o trabalho infantil não era mais permitido.
Isso leva-nos a pensar que o trabalho infantil, em especial aquele análogo a escravidão, acabou no século XX. Muitos se assustariam com histórias de crianças sendo obrigadas a trabalhar em cargos pesados e perderem suas infâncias. Entretanto, segundo a Organização Internacional do Trabalho, em 2017 estimava-se que 152 milhões de crianças trabalhassem em todo o mundo. Segundo a CNN, o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos encontrou, entre 1° de outubro de 2022 e 20 de julho de 2023, 4.474 crianças empregadas em situações que violam as leis federais de trabalho infantil.
Crianças migrantes e o trabalho infantil nos Estados Unidos
“Cristian trabalha na construção em vez de ir à escola. Ele tem 14 anos”. Esse é o início de uma reportagem do The New York Times intitulada “Alone and Exploited, Migrant Children Work Brutal Jobs Across the U.S.”. Um alto número de crianças desacompanhadas começou a adentrar o país e elas, no desespero, acabam nos piores trabalhos. Uma investigação desse jornal, relatou situações árduas e ilegais nas quais as crianças e adolescentes se encontram, “trabalhadores menores de idade em matadouros em Delaware, Mississippi e Carolina do Norte. Crianças serrando tábuas de madeira em turnos noturnos em Dakota do Sul”.
Em 2022, o número de crianças e adolescentes desacompanhados que entraram no país subiu para 130 mil. Três vezes o número apresentado cinco anos antes. Longe de casa, sem apoio familiar, sem dinheiro e comida, as crianças aceitam quaisquer oportunidades que aparecem e que possam fornecer a sobrevivência básica a elas. Assim, muitos se aproveitam para conseguir uma mão-de-obra barata e inocente. Ademais, algumas crianças enviam parte da sua remuneração para os familiares que continuam no país de origem.
Outro fator que está contribuindo para que um número sem precedentes de crianças acabe em situações deploráveis é a falta de vigilância e fiscalização do governo norte-americano acerca destes casos. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos tem a obrigação de encontrar lares para os menores de idade que atravessam a fronteira desacompanhados. Eles são enviados aos lares dos patrocinadores - familiares, amigos ou conhecidos das famílias - e esses precisam cumprir algumas obrigações, como enviar as crianças para a escola.
Entretanto, algumas denúncias afirmam que o governo está falhando em combinar as crianças e os patrocinadores e em rastrear devidamente as crianças após enviarem-nas aos novos lares. As denúncias foram feitas por funcionários federais destacados para trabalhar num local de emergência em Fort Bliss, Texas e apresentadas ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos e ao Presidente do Comitê Judiciário do Senado, Dick Durbin.
Em outra reportagem do The New York Times, eles relatam a experiência da Sra. Brandmiller. Sua função era avaliar os patrocinadores e ela tinha sido treinada para identificar possíveis casos de tráfico. Como relata o jornal, na primeira semana de trabalho de Brandmiller, ela identificou dois casos suspeitos. O primeiro era de um homem que patrocinava três garotos e os colocava para trabalhar em sua empresa de construção. O segundo queria patrocinar duas crianças, no entanto, elas teriam que custear a viagem até a Flórida, onde ele morava. Imediatamente, ela contatou os supervisores do Departamento de Saúde e Serviços Humanos por meio do email, notificando que era um assunto urgente. Dias depois, ela descobriu que uma das crianças seria entregue ao patrocinador da Flórida e enviou mais um e-mail sobre a situação e acrescentou que uma criança de 14 anos já havia sido entregue ao mesmo homem. Por fim, ela enviou um e-mail ao gerente do abrigo. Depois disso, seu acesso ao prédio foi revogado e ela nunca descobriu o porquê da demissão.
Mudanças na lei que facilitam o trabalho infantil nos EUA
Ao desumanizar pessoas migrantes, o governo norte-americano empurra crianças ao trabalho forçado, cruel e perigoso. É de se imaginar que, com tantos alertas, o legislativo e o executivo busquem aprimorar as leis para evitar que essas ocorrências tornem-se cotidianas. No entanto, não é isso que a sociedade estadunidense tem presenciado. Desde 2022, 15 estados promulgaram novas leis referentes ao trabalho infantil. Desses, apenas 5 estados promulgaram leis que reforçam a proteção contra o trabalho infantil, outros 9 enfraqueceram suas legislações e um promulgou leis que aumentam a proteção e outras que enfraquecem. Ademais, há 43 projetos de leis em vários estados do país sobre o tema, muitos visando o enfraquecimento da pauta.
Como afirma o The Washington Post, a maioria dos estados possui leis muito mais restritas do que as leis federais acerca da temática. Entretanto, há um esforço de legisladores republicanos, associações de restaurantes, bebidas alcoólicas e de construtores residenciais para enfraquecer essas leis e permitir que os mais jovens possam ser empregados. Após a pandemia, esses setores foram afetados com a oferta de mão-de-obra e vêem nos jovens e pré-adolescentes uma oportunidade de repor com baixo custo.
Em New Hampshire, a nova legislação permite que jovens a partir de 14 anos possam servir bebidas alcoólicas. A regra anterior, que já era menos restrita em relação a outros estados, permitia que o serviço fosse feito a partir dos 15 anos. O projeto de lei foi apoiado pela New Hampshire Lodging and Restaurant Association e pela State Liquor Commission. No Arkansas, a nova “Lei de Contratação de Jovens” eliminou a obrigatoriedade da autorização de trabalho - uma exigência de prova de idade, permissão dos pais e assinatura do empregador - para jovens de 14 e 15 anos. Nesse mesmo estado, uma investigação federal encontrou 10 crianças trabalhando ilegalmente para uma empresa que limpa equipamentos perigosos de processamento de carne.
A ação dos conservadores e bilionários tem sido especialmente relevante para atacar as leis que protegem crianças do trabalho infantil. Os principais projetos que enfraquecem tais leis foram apresentados por membros do Partido Republicano. Ademais, conservadores bilionários, como a família Kosh - controladores das indústrias Kosh -, financiam a redução das restrições ao trabalho infantil. Em 2019, por exemplo, um acadêmico vinculado ao Commonwealth Foundation, financiado pelas indústrias Kosh, defendeu o fim do salário mínimo para adolescentes em uma publicação na revista Forbes.
Um Think Thank conservador sediado na Flórida, Foundation for Government Accountability (FGA), patrocinou diversos projetos que relaxam as leis de trabalho infantil, em diversos estados. Iowa, Flórida, Arkansas, Missouri e muitos outros estados possuem projetos apoiados por esse grupo conservador que encanta os políticos republicanos, segundo o The Washington Post. A FGA é financiada por diversos doadores ultraconservadores e republicanos, como a Ed Uihlein Family Foundation, uma organização filantrópica do bilionário Richard Uihlein, e o 85 Fund, uma organização conservadora de doadores anônimos que visa influenciar o sistema judiciário e político norte-americano.
O trabalho infantil, combatido
durante parte do século XX, cresce exponencialmente nos dias atuais e não tem
perspectiva de queda. Associado ao mercado de trabalho desaquecido no mundo
pós-pandemia e ao recorde de crianças migrantes desacompanhadas, o número de
adolescentes em trabalhos perigosos e abusivos tende a aumentar. Com isso em
vista, grupos ultraconservadores e republicanos aproveitam para defender a
necessidade de incluir crianças e adolescentes no mercado de trabalho, relaxando
legislações que defendem os interesses desse grupo minoritário. A perspectiva é
uma crescente exploração do trabalho infantil, com poucas restrições e direitos
trabalhistas.