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O aplicativo móvel CBP One viola os direitos das pessoas que buscam asilo nos Estados Unidos

Gabriel Carvalho Fogaça | 02/09/2024 21:23 | Análises
IMG Foto: Amuzujoe

O aplicativo CBP One é uma ferramenta desenvolvida pelo Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, na sigla em inglês) para facilitar o controle migratório na fronteira americana. Anunciado pela Casa Branca em 2020 como parte de uma série de medidas para gerir o fluxo crescente de imigrantes, o aplicativo permitiria que os solicitantes de asilo antecipassem seus pedidos e agendassem uma visita a um porto de entrada nos Estados Unidos, evitando a necessidade de esperar dias na fronteira.


Dessa forma, a expectativa sobre as funcionalidades do aplicativo era a de reduzir o tempo de espera e as aglomerações nos portos de entrada dos EUA, além de diminuir o número de pessoas que ficam na fronteira entre o México e os EUA, assim como mitigar os problemas associados a essas aglomerações, possibilitando um processo de triagem mais seguro, ordenado e humano, conforme comunicado pela Casa Branca.


Contudo, não foi isso o que aconteceu a partir do momento do anúncio. A política de imigração dos EUA tornou-se mais rígida: imigrantes pegos tentando entrar ilegalmente no país agora serão expulsos e sujeitos a um banimento de cinco anos, impedindo sua reentrada nesse período.


Por conta disso, uma preocupação acentuada surgiu entre entidades de defesa de imigrantes e refugiados. Esse é o caso do relatório da Anistia Internacional (2024) que caracteriza a prática como uma “clara violação dos direitos humanos internacionais e do direito dosrefugiados, e um mal-estar que acentua a questão da desigualdade tecnológica, já que nem todos possuem um celular ou formas de acessar a internet. Ainda, como apontado por Paul O'Brien, Diretor Executivo da Anistia Internacional EUA, há temores sobre o uso inadequado das informações pessoais fornecidas pelos imigrantes.


Somando-se à problemática, o uso do CBP One foi reforçado pela Circumvention of Lawful Pathways Final Rule (Regra Final de Evasão de Caminhos Legais), introduzida pelo governo Biden em 2023, que impõe duras restrições àqueles que requerem asilo nos EUA vindo do México pela fronteira sul.


A partir disso, com o aumento do tempo de espera e a incerteza sobre a alocação de consultas, muitos requerentes de asilo se veem forçados a tomar decisões arriscadas de cruzar a fronteira para os Estados Unidos sem consultas agendadas, colocando suas vidas em risco e potencialmente tornando-se inelegíveis para asilo devido ao “Asylum Ban” (Proibição de Asilo) de Biden.


O aplicativo CBP One dificulta o agendamento de consultas para quem solicita a entrada nos EUA

A falta de estabilidade e acessibilidade no uso do aplicativo são pontos que tornaram-se notórios na situação que envolve o CBP One, visto que, conforme o relatório da Anistia Internacional, muitos dificultadores estão envolvidos. Entre eles, encontram-se: a barreira tecnológicimitação de idioma e alfabetização, desinformação e a natureza arbitrária da alocação de consultas.


Ainda, de acordo com o relatório, o aplicativo "trava rotineiramente" e frequentemente apresenta mensagens de erro para os usuários, fator que apenas engessa o processo de agendamento de consultas para quem precisa acessar os portos de entrada dos EUA. Migrantes também enfrentam barreiras linguísticas — como pela disponibilidade do aplicativo apenas em apenas 3 idiomas (inglês, espanhol ecrioulo haitano) e a falta de acessibilidade para quem não é alfabetizado —, além da escassez de oportunidades para obter uma consulta.


Histórias que exemplificam os obstáculos supracitados incluem a de Michel, cujo sobrenome não foi identificado. Ele é um pedreiro de 35 anos vindo da Ciudad Juárez e relata sobre suas experiências frustradas ao tentar agendar uma consulta para pedir refúgio: “Estão dificultando as coisas. Ele mencionou que o aplicativo para repentinamente, em qualquer uma de suas etapas. Além disso, para tentar agendar um horário, ele precisa trabalhar diariamente em "bicos" para fazer as recargas de internet necessárias para que sua esposa também tente marcar uma consulta.


Outro caso semelhante é o de Glória, uma guatemalteca de 56 anos que demonstra confusão sobre os processos de refúgio e asilo: "Dizem que você precisa de um patrocinador nos EUA, e eu não tenho". Essa fala apenas revela a falta de clareza nas informações para os migrantes sobre os requisitos de asilo para cada nacionalidade, visto que tais exigências se aplicam apenas a cidadãos de Cuba,Haiti, Nicarágua e Venezuela.


Por fim, uma mulher mexicana, que também busca asilo, relata a tentativa de agendar uma consulta há três meses e expressa seu desespero diante da incerteza: “Estou tentando marcar uma consulta há três meses. Pensei que as consultas estavam indo em ordem. É enlouquecedor.”


Acerca de sua exposição, é interessante pontuar que uma das deficiências que envolve o uso do aplicativo é o fato dele operar em um sistema de consultas aleatórias, proporcionado experiências inconsistentes entre os requerentes de asilo.


Sob essa perspectiva, Paul O'Brien, afirmou que "o aplicativo CBP One transforma o direito legal de asilo em um sistema de loteria baseado no acaso", enfatizando que requerentes de asilo podem nunca alcançar segurança e proteção nos Estados Unidos simplesmente porque podem nunca conseguir uma consulta.


Destarte, todo o mal-estar que permeia o assunto só se agrava com uma análise realizada pelo Security Lab da Anistia Internacional que revelou que o aplicativo CBP One envia informações e identificadores de dispositivos para o serviço Firebase do Google, algo que não é informado aos usuários, trazendo à tona preocupações sobre privacidade, vigilância e possíveis discriminações.


A digitalização no humanitarismo: um facilitador ou uma nova barreira?

Considerando todos os problemas que envolvem uso do CBP One e partindo das literaturas de Austin Kocher, Glitches in the Digitization of Asylum: How CBP One Turns Migrants' Smartphones into Mobile Borders e Martina Tazzioli, Digital expulsions: Refugees’ carcerality and the technological disruptions of asylum, é possível questionar toda a digitalização na vida de imigrantes em processos humanitaristas.


Primeiramente, o trabalho de Kocher (2023) tem em vista argumentar que as falhas que permeiam as funcionalidades do aplicativo CBP One, em vez de meros acidentes, são resultados de decisões políticas que forçam migrantes vulneráveis a depender ainda mais de “tecnologias experimentais que dificultam o processo de solicitação de asilo. Assim, as novas ferramentas modernas limitam o acesso a auxílios humanitários, visto que muitos não conseguem superar as barreiras digitais.


Frente a isso, muitas perguntas pertinentes surgem (Kocher, 2023): como devemos avaliar o uso do governo de smartphones de migrantes como um mecanismo para acessar o asilo? Pode-se confiar em uma agência cuja missão é a fiscalização de fronteiras para criar software confiável para migrantes em risco de perseguição enquanto essa mesma agência expande outras formas de vigilância que facilitam a exclusão demigrantes?


Muitos pontos levam a respostas desfavoráveis em cada uma dessas perguntas, já que é justamente com essas reflexões que Kocher (2023) explica os efeitos tecnológicos na vida dos imigrantes pela noção de digital expulsion (expulsão digital), introduzida por Martina Tazzioli, em que eles “governam por meio da desorientação:


1. As vagas liberadas para agendamento são muito limitadas, sendo preenchidas rapidamente. Isso prejudica famílias com muitas crianças, visto que demoram mais para inserir informações biográficas, levando algumas a se separarem.


2. Inicialmente, o aplicativo foi lançado apenas em inglês e espanhol, sendo, portanto, inacessível para requerentes haitianos de asilo. Mesmo após a introdução do idioma crioulo haitiano, a qualidade de tradução foi avaliada como baixa.


3. O aplicativo CBP One foi recorrentemente descrito como “glitchy, ou seja, apresentou muitas falhas inesperadas, bugs e travamentos que dificultaram o agendamento de consultas.


4. O software de reconhecimento facial do aplicativo, segundo alegações, discriminava migrantes com peles mais escuras, de forma que não conseguissem ser propriamente reconhecidos na plataforma.


Todos esses pontos corroboram a posição da Martina Tazzioli (2023, p. 1300), em que as tecnologias digitais no humanitarismo, para refugiados, são usadas principalmente para dificultar que migrantes se tornem solicitantes de asilo e tenham acesso a direitos e ao apoio financeiro-humanitário.


Além disso, por meio das expulsões digitais, os atores privados e estatais capitalizam sobre o deslocamento dos imigrantes por meio da economia baseada em dados, nas quais solicitantes de asilo são transformados em fontes de extração de dados para justificar novas intervenções e a implementação de novos sistemas tecnológicos (Tazzioli, 2023, pp. 1302-1303), algo que se une à preocupação de Paul O'Brien, pelo medo de um uso indevido de informações fornecidas no aplicativo.


A não-neutralidade da tecnologia e o apelo da Anistia Internacional

As dinâmicas retratadas destacam como a digitalização no humanitarismo marginaliza os migrantes e os transforma em sujeitos de controle, utilizando tecnologias que ampliam a vigilância e perpetuam a exclusão. Ao analisar a migração sob a ótica dessas barreiras digitais, fica evidente que as tecnologias não são neutras; elas funcionam como ferramentas para fortalecer estruturas de poder que limitam o acesso a direitos fundamentais e intensificam as desigualdades. Portanto, ao invés de servirem como pontes para a proteção e a justiça, essas inovações tecnológicas frequentemente se tornam obstáculos que ampliam a precariedade dos migrantes e dificultam ainda mais sua integração e sobrevivência.


É necessário mencionar que o uso da tecnologia não é integralmente negativo, visto que seu potencial beneficente é simetricamente proporcional aos malefícios quando aplicado de forma planejada e inclusiva. Contudo, o que se observa atualmente, neste caso, é um incentivo à transformação dos solicitantes de asilo em imigrantes ilegais.


A partir do exposto, a Anistia Internacional apela aos Estados Unidos para cessarem imediatamente a implementação da Proibição de Asilo e o uso obrigatório do aplicativo CBP One: Ana Piquer, a diretora das Américas da organização, destaca que, embora inovações tecnológicas possam oferecer um trânsito mais seguro e processos de fronteira mais ordenados, “programas como o CBP One não podem condicionar e limitar a maneira de buscar proteção internacional nos Estados Unidos. Amy Fischer, Diretora de Direitos de Refugiados e Migrantes da Anistia Internacional EUA, por sua vez, defende que “Os Estados Unidos têm a obrigação moral e legal de proteger todas as pessoas que buscam segurança em nosso país


Em razão disso, muitos processos que envolvem migrantes internacionais necessitam, imperativamente, de uma revisão cuidadosa e humana para obterem o acolhimento substancial de que precisam. Já que, nas palavras de Tazzioli (2023, pp. 1303-1311), a vivência dos imigrantes é sufocada, confinada e perturbada. Eles se tornam usuários forçados da tecnologia, despojados de seu tempo e esgotados de suas vidas.

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