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O censo de 2020 apresentou grande subcontagem de negros, latinos e nativos americanos

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 20/03/2022 10:04 | ANÁLISIS
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A notícia de que o censo de 2020 subestimou o número de negros, latinos e nativos nos Estados Unidos repercutiu na maior parte da mídia do país. Esta informação foi divulgada pelo US Census Bureau, em 10 de março de 2022. O texto ressaltou a acuracidade dos dados obtidos com a pesquisa, chamando atenção para as dificuldades relacionadas à pandemia de Covid-19. Conforme o diretor do órgão, Robert L. Santos “Os resultados de hoje mostram evidências estatísticas de que a qualidade da contagem total da população do Censo 2020  é consistente com a dos censos recentes. Isso é notável, dados os desafios sem precedentes de 2020. Mas os resultados também incluem algumas limitações — o Censo de 2020 subestimou muitos dos mesmos grupos populacionais que historicamente subestimamos e superestimou outros”. No caso, enquanto afro-americanos, latinos e nativos foram subestimados, os grupos de brancos e asiáticos foram superestimados. 

O censo trabalha com duas metodologias de análise: a Pesquisa Pós-Enumeração (PES) e Estimativas de Análise Demográfica (DA) e estimam a qualidade da contagem da população e de certos grupos demográficos. Eles estimam o tamanho da população dos EUA e depois comparam essas estimativas com as contagens do censo. O PES estima a população usando uma pesquisa amostral, enquanto o DA estima a população usando registros vitais e outros dados. As estimativas de cobertura do PES variaram por raça e origem hispânica. As estimativas de cobertura de DA, para essas características, ainda não estão disponíveis. 

Especificamente no que tange ao PES, os dados mostram que:
a) A população negra ou afro-americana sozinha, ou em combinação, teve uma subcontagem estatisticamente significativa de 3,30%. Isso não é estatisticamente diferente do que ocorreu em 2010, quando a subconta foi de 2,06%;
b) A população hispânica ou latina teve uma taxa de subcontagem estatisticamente significativa de 4,99%. Isso é estatisticamente diferente de uma subcontagem de 1,54% em 2010;
c) As populações de índios americanos ou nativos do Alasca sozinhos, ou em combinação, que vivem em reservas, mostram uma taxa de subcontagem estatisticamente significativa de 5,64%. Isso não foi estatisticamente diferente de uma subcontagem de 4,88% em 2010;
d) A população branca não hispânica sozinha teve uma taxa de supercontagem estatisticamente significativa de 1,64%. Isso é estatisticamente diferente de uma contagem excessiva de 0,83% em 2010;
e) A população asiática sozinha, ou em combinação, teve uma taxa de contagem excessiva de 2,62%. Isso é estatisticamente diferente de 0,00% em 2010.
f) O nativo havaiano ou outro ilhéu do Pacífico sozinho, ou em combinação, teve uma taxa de supercontagem estimada de 1,28%. Esta taxa não difere de uma taxa estimada de 1,02% em excesso em 2010. Ambas não são estatisticamente diferentes de zero.

Apesar de o US Census Bureau minimizar o problema da subcontagem de certos grupos minoritários, ao afirmar que estatisticamente os dados estavam corretos, as implicações políticas de tal situação são muito sérias, principalmente porque muitas políticas públicas são definidas a partir das informações do censo. Os números do censo são usados para orientar a distribuição de cerca de US$ 1,5 trilhão a cada ano em dinheiro federal direcionado para assistência médica, educação, transporte e outros serviços públicos para as comunidades locais. Já do ponto de vista político, estas informações subsidiam a distribuição de assentos na Câmara dos Representantes entre os estados e o processo de redistritamento, realizado a cada 10 anos. 

Um elemento a mais de polêmica relacionado ao censo de 2020 foram as pressões exercidas pelo ex-presidente Donald Trump sobre os funcionários do US Census Bureau. Conforme notícia do portal NPR, de 15 de janeiro de 2022, além de tentar diminuir o tempo de coleta de dados, funcionários ligados a Trump tentaram interferir na metodologia da pesquisa ao tentar excluir imigrantes não documentados das contagens do censo usadas para realocar a parcela de cada estado de assentos no Congresso e votos eleitorais.

Conforme a NPR, “embora o esforço sem precedentes do ex-presidente não tenha alcançado seu objetivo final, causou estragos na maior agência de estatística do governo federal, que também enfrentava a pandemia de coronavírus, derrubando a maioria de seus planos para a contagem de uma década. Os atrasos decorrentes do COVID-19 forçaram a agência a concluir que não poderia mais cumprir o prazo legal de relatório para o primeiro conjunto de resultados e precisava de mais tempo. A decisão de última hora do governo de reduzir a contagem provocou protestos públicos, incluindo um processo federal que chegou à Suprema Corte dos EUA”.

Pode ser coincidência ou não, mas a divulgação sobre a subcontagem de cidadãos negros, latinos e indígenas ocorre quando o processo de redistritamento está quase concluído, faltando apenas a definição de Flórida, Louisiana, Missouri e New Hampshire. Apesar de trazer informações que poderiam modificar a distribuição de assentos, o momento em que a informação aparece é tarde demais para interferir no rumo dos acontecimentos, especialmente nas eleições de meio de mandato de novembro de 2022.

Organizações da sociedade civil protestaram contra a subcontagem de minorias. Arturo Vargas, CEO do Fundo Educacional NALEO,já advertia sobre o problema em maio de 2021, conforme notícia da NBS. Segundo Vargas “O número total da população residente ficou no limite inferior das estimativas, e vários estados com grandes populações latinas não se saíram tão bem. E, infelizmente, isso, para mim, sugere coincidências demais […] se os números do censo estiverem errados, então a quantidade de financiamento destinada aos estados com grandes populações latinas [irá diminuir] o que significa que eles não terão sua justa parte. E este é um erro de 10 anos. Não é apenas no próximo ano. É para a próxima década.”

Em um comunicado de imprensa divulgado em 10 de março, a NALEO expressou o seu descontentamento com o resultado do censo, com a subcontagem das minorias e com a interferência do ex-Secretário de Comércio, Wilbur Ross, de mentir ao Congresso e de prejudicar o trabalho do US Census Bureau. Na conclusão do comunicado, a NALEO exorta reformas no Bureau para aumentar a acuracidade das informações, tal como segue: “Finalmente, essa subcontagem demonstra ainda mais a extrema necessidade de o Census Bureau fazer mudanças fundamentais na forma como conta a população dos EUA. Não podemos mais confiar nos métodos tradicionais de enviar formulários para as famílias e incentivar o público a responder — e realizar entrevistas de porta em porta com as famílias que não preenchem esses formulários. Se nosso país pode encontrar uma maneira de superar uma pandemia global que ocorre uma vez a cada século, podemos encontrar uma maneira de contar todos os nossos residentes de maneira justa e precisa. Precisamos modernizar o censo com uma nova abordagem para realizar o progresso necessário para alcançar esse importante objetivo”.

O presidente da organização de defesa dos afro-americanos, National Urban League (NHU), Marc H. Morial, também emitiu um comunicado protestando contra a subcontagem de pessoas negras, do qual destacamos a seguinte passagem: “O Census Bureau deve repensar e explorar medidas mais precisas da subconta e desenvolver novas metodologias e operações de coleta de dados para diversas populações […] as desigualdades raciais estão inseridas na história do processo do Censo e na instituição do Census Bureau como agência. Para manter a promessa constitucional e a proteção da representação igual para todos, o Census Bureau deve tomar imediatamente medidas para repensar e desintoxicar suas operações em relação às desigualdades raciais, e o Congresso deve financiar pesquisas sobre novas operações e fontes de dados a partir do próximo ano. […] A National Urban League compartilhou suas preocupações sobre as operações do Censo no início deste mês com o Diretor do Bureau do Censo, Robert Santos, com o Congressional Black Caucus e o com presidente Biden”.

Uma democracia disfuncional

Os sistemas políticos do Reino Unido e dos Estados Unidos podem ser considerados os mais estáveis do mundo. No caso do primeiro, não se reporta rupturas institucionais desde a Revolução Gloriosa, em 1689. No segundo, desde o fim da Guerra de Secessão, em 1865, não há registro de rupturas institucionais, exceto pelos eventos de 6 de janeiro de 2021. Porém, quando se analisa de perto o funcionamento do sistema político dos Estados Unidos, chama atenção a disfuncionalidade de algumas regras e o uso oportunista dos dispositivos legais para burlar a essência de uma democracia, que é a de garantir direitos iguais para cada cidadão.

Nota-se que nem as modificações eleitorais surgidas na década de 1960, em meio ao movimento de direitos civis liderado por Martin Luther King, conseguiram garantir o pleno direito de voto para a população afro-americana e para os latinos. Ainda hoje persistem manobras políticas para cercear o direito de voto das minorias, seja pelo fato de que as eleições ocorram em dia útil, dificultando o voto dos trabalhadores, seja pela diminuição de locais de votação nas regiões em que vivem essas populações e, algo que é mais grave, pelo gerrymandering no processo de redistritamento que ocorre a cada 10 anos, tal como já discutimos em nosso portal. Vimos que a definição dos distritos é efetuada de forma completamente arbitrária, beneficiando o partido que possui o controle do governo e dos parlamentos estaduais, não importando que sejam democratas ou republicanos. Outro problema diz respeito às inúmeras legislações estaduais que visam suprimir o direito de voto, tal como também discutimos em 23 de janeiro. Nesse aspecto, o Congresso bloqueou a legislação proposta por Joe Biden para tentar ampliar o direito de voto.

O tema em questão, que trata da subnotificação da população latina em 4,99%, da população afro-americana em 3,3% e da população indígena em 4,88%, é um problema sério com implicações políticas importantes, pois distorce a representatividade em favor da população branca que, está em declínio relativo desde o final do século XX.

Nada indica que este problema será resolvido a contento, visto que o sistema político também apresenta outra disfuncionalidade relacionada à polarização entre os dois principais partidos, fato que paralisa a construção de consensos mínimos para a solução dos principais problemas dos Estados Unidos. Por enquanto, cabe aos segmentos prejudicados apenas o direito de denunciar as arbitrariedades e apelar para o judiciário. Entretanto, não há perspectiva de que tais disfunções possam ser corrigidas, nem daqui a oito anos, quando ocorrerá o novo censo decenal.

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