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ESTADO DE EXCEÇÃO EM EL SALVADOR

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 02/04/2022 21:11 | ANÁLISIS
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Voltar ao tema de El Salvador no portal que discute a presença da comunidade latina/hispânica nos Estados Unidos pode parecer algo fora do nosso escopo. Mas como já discutimos em outra análise, existe uma preocupação especial no governo dos Estados Unidos sobre os assuntos pertinentes ao chamado “Triângulo Norte da América Central”, tal como refletimos em 8 de dezembro de 2021, a violência relacionada ao tráfico de drogas, que abastece o mercado estadunidense e a corrente imigratória que pressiona a fronteira com o México. Na década de 1980, a então embaixadora de Reagan nas Nações Unidas, Jeane J. Kirkpatrick, chamou a América Central de "o lugar mais importante do mundo para os Estados Unidos hoje", pois, naquela época, o governo sandinista da Nicarágua e os grupos guerrilheiros de El Salvador e Guatemala desafiavam o imperialismo de Washington na região. Atualmente, o establishment estadunidense volta a se preocupar com a região por conta de uma maior presença comercial e econômica da República Popular da China na América Latina. Em 8 de março de 2022, durante uma audiência no Congresso, a comandante do US Southcom (“Comando Sul dos Estados Unidos”), general Laura Richardson, afirmou que a China é o desafio “número um” na área de atuação de seu Comando. Objeto de especial atenção foram os investimentos da Iniciativa “Belt and Road”, nomeadamente no Panamá, Argentina e Colômbia.

Há ainda uma preocupação adicional para Washington que está relacionado às gangues criminosas conhecidas como “maras”. Esses grupos, como a Mara Salvatrucha-MS-13 e a Mara Barrio 18, se desenvolveram nos Estados Unidos, principalmente na Califórnia, a partir de jovens imigrantes vindos da América Central. Posteriormente, se estenderam para os países de origem desses imigrantes, principalmente El Salvador, em que as atividades ilícitas se associaram ao narcotráfico internacional. Muitos dos problemas relacionados a essas gangues de espalham dos Estados Unidos para El Salvador e vice-versa. Daí termos um olhar especial para o contexto salvadorenho.

Estado de Exceção
No dia 27 de março, o Congresso de El Salvador aprovou, por ampla maioria, o pedido feito pelo presidente Nayib Bukele para instituir um estado de exceção no país pelo período de 30 dias. O decreto aprovado suspende o direito à liberdade de reunião e associação, o direito à defesa, restringiu o direito do detido de ser informado do motivo da sua detenção, ter direito a um advogado de defesa, e às devidas garantias legais. Também suspendeu o direito à inviolabilidade da correspondência e à intercepção de comunicações sem necessidade de ordem judicial. Além disso, estendeu o período de detenção administrativa e autorizou a Polícia Nacional Civil a deter qualquer pessoa que considere suspeita para averiguação. Conforme com comunicado da Assembleia Nacional de El Salvador; “A aprovação do regime de emergência constitui uma importante ferramenta que a Assembleia Legislativa concede ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (“Ministerio de Justicia y Seguridad Pública” – MJSP) para atuar sem obstáculos diante do aumento das mortes violentas. Esta medida permitirá que as instituições que garantam a segurança do território, protejam a vida, a integridade física e moral dos salvadorenhos e atuem de forma decisiva contra grupos à margem da lei que tenham perturbado gravemente a ordem pública.”.

Esta medida drástica foi adotada após uma onda de assassinatos que ocorreu no último fim de semana e que tende a desestabilizar o país. Segundo o jornal de oposição a Bukele, o “El Faro”, entre 25 e 27 de março, foram assassinadas 70 pessoas em diferentes departamentos do país, o maior número em 20 anos. Em sua maioria, os assassinatos ocorreram em territórios controlados pela Mara Salvatrucha-13 (MS-13). Mas, de acordo com dados do Movimento dos Trabalhadores da Polícia Nacional Civil, ainda segundo El Faro, as vítimas que morreram de forma violenta, não tinham necessariamente histórico de ligação com as quadrilhas delinquentes, pois, pelo menos 30 pessoas assassinadas trabalhavam ou exerciam atividade econômica e não tinham antecedentes criminais, tais como vendedores ambulantes, padeiros, motociclistas e trabalhadores da construção civil.

O “Latino Observatory” havia chamado atenção para a situação de El Salvador em 16 de dezembro, dias após o governo dos Estados Unidos sancionar diversas autoridades do país. O argumento utilizado pelo Departamento de Justiça era o de penalizar autoridades que estavam vinculadas à corrupção, às redes criminosas que atuam no país centro-americano e nos Estados Unidos, as chamadas “maras” e ainda por conta de mudanças constitucionais que desagradaram o governo de Washington. Naquele momento, nós levantamos a hipótese de que a escalada de sanções contra o governo de El Salvador possuía um forte componente geopolítico com vistas a conter a presença da China na América Central.

Pois bem, mesmo não conhecendo todos os fatos envolvidos no problema salvadorenho, na condição de estudiosos das relações internacionais, é factível formular algumas questões, como, por exemplo: por que a desestabilização da El Salvador ocorre num momento de grande turbulência internacional, notadamente com a guerra na Ucrânia que opõe Estados Unidos e OTAN contra a Rússia? O que justificou a série de atentados organizados pela Mara Salvatrucha-MS-13, justamente quando se acusava o governo de Bukele de ter garantido a sua vitória nas eleições legislativas de 2021 por conta do apoio dos grupos criminosos? Como isso se relaciona com um maior engajamento do país com a China? São perguntas muito difíceis para se obter respostas, mas a simples formulação já é reflexo das inquietações que surgem neste contexto internacional bastante complexo.

Acerca do contexto atual, é interessante mencionar a opinião de Ricardo Valencia, em El Faro, em 8 de junho de 2021, em que ele comenta sobre o aumento das desconfianças entre o governo de Joe Biden e Nayib Bukele e deixa uma ameaça velada ao líder salvadorenho: “Se a rixa com os Estados Unidos se aprofundar, como Bukele pareceu sugerir em seu discurso sobre o estado da nação em 1º de junho, não acho que ele queira ficar do lado da China se Washington o acusar de promover a agenda de Pequim. Como um ex-diplomata dos EUA me disse uma vez: “Quando Washington quer lutar, luta”. Isso significa que quando Washington vê você como um problema geopolítico, os Estados Unidos podem escolher entre uma ampla gama de respostas, algumas mais diplomáticas do que outras. [...] Os Estados Unidos abordaram sua disputa com o governo Bukele com cautela. [...] A abordagem de Bukele para alcançar a “soberania” é consolidar sua autocracia, mas Washington quer limitar sua esfera de influência aos 21.000 quilômetros quadrados de território do país. Washington não quer lutar, mas se o presidente salvadorenho engatar sua carroça em Pequim, Biden será forçado a agir. Se os Estados Unidos decidirem lutar, terão milhares de maneiras de transformar El Salvador em uma gaiola de ouro para a nova elite econômica e política de Bukele”.

Vale a pena incorporar outro elemento na análise: o posicionamento do governo de Bukele na votação na Assembleia Geral da ONU, em 2 de março, que discutiu a invasão russa ao território da Ucrânia. Naquela oportunidade, El Salvador, Nicarágua, Cuba, Bolívia e Venezuela se abstiveram em condenar o governo de Vladimir Putin. Dito de outra maneira, o governo salvadorenho se colocou mais uma vez contra o governo de Joe Biden.

Vale salientar que para os Estados Unidos, qualquer posição que não seja a do alinhamento, é compreendida como contrária a seus interesses. Isso ficou bem claro numa entrevista feita por Juan Gonzalez, diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, para o podcast da revista America's Quartely, em 3 de março, em que afirmou que não haver espaço para a neutralidade no tema da guerra entre Rússia e Ucrânia. “Nesse ponto você tem que escolher um lado, e eu penso, sem especificar nenhum país, que a articulação da neutralidade é uma racionalização por não querer tomar uma posição".
 
É interessante notar que depois da publicação do artigo de Valencia, as tensões entre Washington e San Salvador cresceram exponencialmente, ainda mais com os eventos que se desenrolam na Ucrânia. Se a situação do governo Bukele já era preocupante antes da guerra, a sua situação tende a se agravar. As sanções contra autoridades salvadorenhas adotadas em 2021 foram muito abrangentes, alcançando uma parte significativa da elite política do país. Nesse sentido, a decisão de adotar um “estado de exceção” reforça a percepção de que seus inimigos não se limitam às maras.

Daí reforçar os questionamentos: o aumento da instabilidade social em El Salvador e o terrorismo aplicado pela maras no último fim de semana se relacionam de alguma maneira? Os Estados Unidos iniciaram uma operação de “regime change” (mudança de regime) no país? Voltemos novamente às palavras de Ricardo Valencia: os Estados Unidos decidiram lutar? A desestabilização de Bukele pode entrar na conta de um realinhamento estratégico dos Estados Unidos na América Latina frente a competidores como Rússia e China?

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