Uma das figuras políticas mais caricatas da história mundial foi, com toda certeza, Luís XIV, rei da França por mais de 70 anos. Sendo o monarca que configura a noção atual do que foi o absolutismo, o chamado “Rei Sol”, em referência ao uso do astro como símbolo da monarquia francesa, Luís XIV governou como a principal autoridade de seu país, centralizando praticamente todo o poder em suas mãos.
Mesmo à época não existindo a tradicional separação dos poderes, existe um líder contemporâneo que está adquirindo características similares do francês, atacando parte da estrutura estatal de seu país e construindo uma visão personalista de si mesmo, qual seja, Donald Trump, presidente dos Estados Unidos.
Desde que tomou posse em 20 de janeiro deste ano, Trump vem adotando uma posição diferente de seu primeiro mandato perante as demandas do país, sendo combativo com instituições ou políticos de oposição e construindo uma imagem própria que coloca sua autoridade acima de outros poderes. Nesse sentido, como esse projeto de “presidente Sol” pode afetar a população americana, em especial os latinos?
Na última semana, um caso chamou a atenção da mídia envolvendo a política mais intensa de deportação da Casa Branca, envolvendo o juiz federal James Boasberg. Em resumo, a Casa Branca invocou a “Alien Enemies Act”, de 1798, para agilizar a deportação nos Estados Unidos. Aprovada há mais de dois séculos, essa lei foi utilizada poucas vezes pelo governo americano, como, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial contra americanos de origem japonesa, alemã e italiana, facilitando sua deportação ou aprisionamento. Ou seja, essa legislação é aplicada contra indivíduos que representem alguma ameaça para o governo ou população americana, característica controversa para ser definida. Desta maneira, visando manter sua promessa de campanha, Trump utilizou da lei para acelerar a deportação de indivíduos, com o caso mais recente sendo o de venezuelanos que teriam relação com a gangue “Tren de Aragua”, enviados para ElSalvador. Na disputa, Boasberg impediu que o executivo empregasse a lei, pontuando a necessidade de uma análise doméstica mais aprofundada antes de uma deportação veloz. Contudo, a reação de Trump e de seu gabinete foi enérgica.
Em uma declaração explosiva, Tom Horman, o chamado “Czar da Fronteira” do governo Trump, disse que “não se importa com o que os juízes pensam”, insinuando uma rejeição da Casa Branca perante a decisão de Boasberg. Além disso, a secretária de imprensa, Karoline Leavitt, disse que o juíz não tem “base legal” para impedir o voo, em razão de quando a ordem foi tomada, o avião com os deportados já estaria fora do espaço aéreo dos Estados Unidos. Trump também adotou uma retórica pedindo a remoção de Boasberg de seu cargo, evidenciando uma questão inédita: até onde vai o poder do presidente e suas ordens executivas?
Em uma entrevista organizada pela Universidade do Michigan, o professor de Ciência Política, Mitchel Sollenberger, analisou as intenções de Trump antes de assumir o cargo este ano, sobre utilizar muitas ordens executivas. Além de destacar que outros presidentes recentes já usufruíram deste poder executivo para colocar suas agendas em prática, como Barack Obama e George W. Bush, o professor evidencia que essa prática se enquadra numa cultura presidencial que se iniciou com Teddy Roosevelt e Woodrow Wilson, que defendiam um poder executivo maior em relação às esferas do legislativo e do judiciário. Alguns anos após o mandato de Wilson, por exemplo, Franklin Delano Roosevelt, quinto primo de Teddy Roosevelt, foi eleito quatro vezes para a presidência e utilizou de muitos poderes executivos no período da guerra para garantir suas ações e seu grande New Deal. Contudo, como é evidenciado por Sollenberger, Trump possui um discurso que destaca a importância das ordens executivas para o seu governo, algo que, combinado com sua visão conservadora e extremista, cria uma visão de que a Casa Branca teria a legitimidade de realizar movimentos que, mesmo que estejam na esfera das assinaturas do presidente, podem passar por cima do judiciário, exemplo das deportações recentes.
As declarações da secretária de imprensa da Casa Branca sobre a decisão de Boasberg e dos comentários do “Czar da Fronteira”, denotam como o poder executivo dos Estados Unidos está caminhando para uma legitimação quase que total do poder do presidente. No site oficial da Casa Branca, um artigo acusatório contra a antiga administração utilizou a seguinte frase: “Os perdedores de fake news da CNN tentaram checar, mas o presidente Trump estava certo (como sempre)”. O artigo em si se tratava de gastos do governo Biden para estudos hormonais, mas as palavras e a maneira acusatória denotam a narrativa conservadora e personalista que o presidente inseriu no poder federal do país. Alguns séculos atrás, a chamada “Casa do Povo” seria uma prima do Palácio de Versalhes.
Desta maneira, o projeto “MAGA” vai ganhando força com essa narrativa de Trump, que utiliza das ordens executivas, leis de períodos de guerra e até declarações de emergência nacional para avançar deportações e a agenda conservadora. Por exemplo, no dia que tomou posse, o presidente declarou emergência nacional na fronteira com o México, que facilitou o envio de militares para a região. Além disso, o inglês foi declarado como língua oficial do país pela primeira vez desde sua independência do Reino Unido, ordem que afetará os 41 milhões de habitantes que possuem o espanhol como sua primeira língua. Vale ressaltar que, no último pleito eleitoral, Donald Trump conquistou 42% dos votos dos eleitores latinos/hispânicos, contra 56% de Kamala Harris. Mesmo que a candidata tenha tido a maioria absoluta, o resultado do republicano foi o maior para seu partido desde 2004.
Por fim, em tal conjuntura, cresce o receio crescente no sistema internacional diante de um presidente “Sol”. O governo Trump avança gradativamente para uma liderança isolada sem nenhum respaldo jurídico sequer de seu próprio país. Mais um exemplo disso é o possível pontapé inicial para uma guerra comercial por meio de tarifas, adotando uma postura protecionista e rompendo acordos históricos com aliados estratégicos na América Latina, como o México, minando relações delonga data. Nessa perspectiva, se um presidente consegue quebrar alianças de longa data com países latinos, o que será de um povo considerado estrangeiro em um gigante azul e vermelho?
A história conta que líderes desconectados da realidade da população e que exercem uma autoridade exacerbada enfrentam consequências drásticas. Maria Antonieta, esposa do rei Luís XVI, teria selado seu destino ao proferir, com desdém e sem buscar saber sobre o povo, a suposta frase: "Se não têm pão, que comam brioche". Da mesma forma, a administração Trump parece se distanciar das necessidades de sua população, especialmente dos imigrantes latinos, que enfrentam deportações rápidas baseadas em leis questionáveis do século XVIII. Notícias revelam relatos de indivíduos deportados sem julgamento adequado e de forma violenta, intensificando o clima de instabilidade social. Diante disso, cabe perguntar: quanto tempo dura um governo “Sol”? Estaria a maior potência mundial à beira de uma crise política?