Em 15 de janeiro nós discutimos aqui no Latino Observatory o problema da radicalização política nos Estados Unidos e os riscos da ascensão da violência como arma política no país, inclusive chamando a atenção para o risco de uma eventual guerra civil, tal como temem alguns
analistas políticos do país. Ações violentas são cada vez mais constantes, tendo como pano de fundo o ódio racial difundido com grupos neonazistas que atualmente estão vinculados ao Partido Republicano.
Podemos citar três exemplos de ações de terrorismo interno
praticado pela extrema direita. O primeiro ocorreu em 27 de outubro de 2018, quando Robert Bowers, um extremista atacou a sinagoga de Tree of Life Congregation, em Pittsburgh, Pennsilvania, assassinando 11 pessoas e ferindo outras sete. O ataque à comunidade judia ocorreu, segundo o terrorista, por inspiração da teoria conspiratória conhecida como “Grande Substituição”.
Também sob a inspiração da teoria da Grande Substituição, o ativista de extrema-direita Patrick Wood Crusius abriu fogo indiscriminado contra os clientes da loja do Walmart em El Paso, Texas, Estados Unidos, em 3 de agosto de 2019. No ataque, foram
assassinadas 23 pessoas e outras 23 ficaram feridas. Este foi o ataque mais mortal contra membros da comunidade latina/hispânica na história recente do país. O autor do atendado disse que tinha por foco os imigrantes mexicanos. Pouco antes do ataque, Crucius postou uma mensagem no fórum on line “8chan” (de volta à internet em 2019 como “8kun”) em que ele cita o massacre na mesquita de Christchurch, em 2018, na Nova Zelândia, em que dezenas de muçulmanos foram assassinados.
O terceiro atentado que merece menção ocorreu em Buffalo, Nova York, em 16 de maio de 2022, quando o terrorista de extrema-direita Payton S. Gendron atacou o Tops Friendly Market e assassinou 10 pessoas e feriu outras três. A maior parte das vítimas pertencia à comunidade afro-americana. O próprio supremacista branco (um eufemismo para nazista nos Estados Unidos) admitiu que o
ataque tinha motivações raciais. Ele também invocou a teoria conspiratória da Grande Substituição.
O que é a teoria conspiratória da “Grande Substituição”?
Há muitas fontes que explicam e analisam a teoria da Grande Substituição. O verbete da Wikipedia é
bastante esclarecedor, assim como a explicação da entidade judaica
Anti-Defamation League (ADL). Segundo as fontes, esta teoria racista e de extrema direita foi disseminada pelo francês Renaud Camus. Ela postula que as elites ditas “globalistas” estão promovendo uma “substituição” da população de origem caucasiana (branca) por povos não brancos, como os árabes e asiáticos muçulmanos na Europa, principalmente por admitir a imigração de grupos que pertencem a comunidades não-cristãs, fato que abalaria as tradições culturais e religiosas da França. De acordo com a Wikipedia e a ADL, embora ideias semelhantes tenham caracterizado várias teorias de extrema-direita desde o final do século 19, como as teorias do francês Maurice Barres e de Adolf Hitler, o conceito atual foi popularizado por Camus em seu livro de 2011 “Le Grand Remplacement”, a Grande Substituição.
Camus defende que "Grande Substituição" foi nutrida pela industrialização, desespiritualização e desaculturação que caracterizam a sociedade materialista e global, que criaram uma espécie de ser humano substituível e sem qualquer especificidade nacional, étnica ou cultural. Nesse aspecto, merece atenção o texto do ex-Chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, que na Revista “Cadernos de Política Exterior”, escreveu um artigo intitulado
“Trump e o Ocidente”, em que reproduz os argumentos da extrema-direita internacional contra o “globalismo” e à perda da identidade nacional no Ocidente.
Esta teoria da conspiração foi incorporada pelos partidos de extrema-direita da Europa e migrou para outros países onde a maior parte da população é caucasiana, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Os apoiadores da teoria sustentam que há um projeto político vinculado à imigração que, em última instância, extinguiria a população original branca em favor de povos de cor, chegando a afirmar que os brancos sofreriam um genocídio na sua própria nação.
De acordo com a ADL, a filosofia da “grande substituição” foi rapidamente adotada e promovida pelo movimento supremacista branco, pois se encaixa em sua teoria da conspiração sobre a destruição iminente da raça branca, também conhecida como “genocídio branco”. É também um forte eco do grito de guerra da supremacia branca, as chamadas “14 palavras”: “Devemos garantir a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas.” Uma vez que muitos supremacistas brancos, particularmente aqueles nos Estados Unidos, culpam os judeus pela imigração não-branca para o país, a teoria da substituição também se associa ao antissemitismo, já que não se restringe à população negra, latina/hispânica e asiática nos Estados Unidos.
Vale a pena citar com esta teoria conspiratória tem encontrado eco na mídia tradicional para se expandir além das redes sociais na Internet, ainda de acordo com a ADL:
Em julho de 2017, Lauren Southern, uma ativista canadense de extrema-direita, lançou um vídeo intitulado “The Great Replacement”, promovendo os temas de Camus. Naquele verão, Southern esteve envolvida no “Defend Europe”, um projeto liderado por nacionalistas brancos europeus para bloquear a chegada de barcos que transportavam imigrantes africanos. O vídeo de Southern popularizou ainda mais a teoria de Camus.
Em outubro de 2018, no The Ingraham Angle da Fox News, a apresentadora Laura Ingraham disse, que “suas opiniões sobre a imigração terão impacto zero e influência zero em uma Câmara dominada por democratas que querem substituir vocês, eleitores americanos, por cidadãos recém-anistiados e pelo crescente número de migrantes que já foram encarcerados”.
Em outubro de 2019, Jeanine Pirro estava discutindo o ódio dos democratas a Trump no programa “The Todd Starnes Show” da Fox Nation. Lá, ela declarou: "Pense nisso. É um plano para refazer a América, para substituir os cidadãos americanos por ilegais que votarão nos democratas”.
Em 8 de abril de 2021, no “Tucker Carlson Tonight”, o apresentador promoveu explicitamente a teoria da ‘grande substituição’. Carlson debateu sobre os imigrantes do “Terceiro Mundo” vindos para os EUA que se afiliam ao Partido Democrata. Ele afirmou, “Eu sei que a esquerda e todos os pequenos porteiros do Twitter ficam literalmente histéricos se você usar o termo ‘substituição’, se você sugerir que o Partido Democrata está tentando substituir o eleitorado atual – os eleitores que agora votam – por novas pessoas, eleitores mais obedientes do Terceiro Mundo, mas ficam histéricos porque é isso que está acontecendo, na verdade. Vamos apenas dizer. Isso é verdade”.
Em 11 de abril de 2021, Andrew Torba, o fundador da Gab, postou em sua própria plataforma: “Agora, hoje, a ADL está tentando cancelar Tucker Carlson por ousar falar a verdade sobre a realidade da substituição demográfica que está acontecendo de forma absoluta e inequívoca no Ocidente. Estas não são declarações ‘odiosas’, são fatos objetivos que não podem mais ser ignorados.”
Como havíamos discutidos na análise de 22 de maio, existe uma forte articulação entre o processo de criação das fake news na Internet, como a teoria da “Grande Substituição”, e a sua validação por parte da
grande imprensa conservadora. Nesse aspecto, torna-se interessante acompanhar como um partido tradicional como o Republicano troca a sua história pelo ganho de curto prazo que pode inviabilizar politicamente o próprio país.
Os republicanos, a “Grande Substituição” e os eleitores latinos
Em 20 de março de 2022, o Latino Observatory destacou a notícia de que as primárias do Texas apontavam para a tendência de apoio crescente ao Partido Republicano entre os
eleitores latinos. Pode parecer um paradoxo se de fato esta tendência se materializar nas eleições de meio de mandato de novembro de 2022, pois os republicanos ostentam uma retórica anti-imigração e, grande parte deles, aderiu às teorias racistas abraçadas pelo Tea Party, pelo Q-Anon e pela teoria da Grande Substituição. Uma explicação factível diz respeito ao fato de que os republicanos ganharam terreno ao conseguir incutir em parte da população latina a ideia de que os democratas são socialistas, contrários aos “valores americanos” e defensores de pautas que agridem a família tradicional Temas relacionados à pauta de costumes, como direito ao aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo e, mais recentemente, a chamada “Teoria Racial Crítica”, tal como discutimos na
análise de 13 de março. Esses segmentos da comunidade latina são indiferentes ao racismo manifestado por amplos setores do Partido Republicano.
O portal Five Thirty Eight chamou
atenção sobre essa contradição. De um lado, os republicanos buscam consolidar o apoio que desfrutam entre os eleitores brancos, que correspondem a 80% de seus apoiadores, difundindo mensagens alarmistas contra uma suposta invasão de imigrantes, contra a “Grande Substituição” e à guerra cultural patrocinada pelos progressistas. Na mencionada matéria se pergunta: “Mas onde isso deixa o Partido Republicano em seus esforços para atrair eleitores de cor, especialmente os latinos que JD Vance [candidato republicano ao Senado por Ohio) e outros rotineiramente classificam como bicho-papão, apesar do então presidente Donald Trump obter ganhos consideráveis entre eles em 2020? À primeira vista, essa mensagem pode parecer em desacordo com um GOP que tentou se remarcar aos trancos e barrancos como o partido da classe trabalhadora para todos os americanos. No entanto, por mais contraintuitivo que pareça, essas mensagens de queixa racial também podem atrair eleitores de cor, especialmente eleitores latinos, que já estavam abertos a apoiar candidatos republicanos.”
A lógica eleitoral faz com que as lideranças do Partido Republicano se apeguem aos paradigmas que foram consolidados durante o governo de Donald Trump, mesmo que isso os associe aos discursos racistas e neofascistas, e rejeitem qualquer iniciativa defendida pelo Partido Democrata. Isso se verificou na votação sobre o endurecimento de leis contra o terrorismo interno praticado por grupos radicais estabelecidos nos Estados Unidos, ocorrida uma semana depois do atentado em Buffalo. A Lei de Prevenção do Terrorismo Doméstico foi proposta pelos escritórios de terrorismo doméstico dentro do Departamento de Segurança Interna (DHS), do Departamento de Justiça (DOJ) e do Federal Bureau of Investigation (FBI). Ela foi aprovada na Câmara em 18 de maio, em uma votação apertada. O placar foi de 222 a 203, com apenas um republicano, Adam Kinzinger (IL), votando a favor da Lei.
Nesse contexto, a Presidente da Casa dos Representantes, Nancy Pelosi, um dia depois da votação, condenou a “teoria da substituição” como “extremamente perturbadora” e peça central para o massacre racista que matou 10 pessoas em Buffalo. Ela desafiou os parlamentares republicanos a rejeitar publicamente esta teoria conspiratória. De acordo com reportagem do Independent, retransmitida pelo
Yahoo News, Pelosi provocou seus adversários: “Por que nem todos neste congresso estão dizendo que rejeitam a teoria da substituição?”. Ela discursou do lado de fora do Capitólio dos EUA rodeada por membros do Congressional Black Caucus, Hispanic Caucus e Asian Pacific American Caucus.
No contexto de paralisia parlamentar criada pelo poder de veto que os republicanos mantêm no Senado, esta lei não irá em frente. O senador Josh Hawley (R-MO), entre outros, irá bloquear o projeto pois ele acredita que a nova legislação irá se voltar contra os grupos conservadores e não contra a esquerda. De acordo com matéria do
The Hill, ele afirmou: “Sou completamente contrário a essa ideia de que daríamos ao governo federal e à aplicação da lei federal poder e autoridade para vigiar os estadunidense, para se envolver em qualquer tipo de monitoramento de discurso direcionado à censura. Acho extremamente assustador e não posso acreditar que eles não tenham aprendido a lição com o desastre do conselho de desinformação.” Ainda de acordo com o The Hill, alguns senadores republicanos veem o projeto de lei de terrorismo doméstico como outra tentativa de atingir a direita, tal como os democratas fizeram após o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, para monitorar os grupos à direita como possíveis ameaças de terrorismo doméstico.
A sociedade dos Estados Unidos, como aliás, de muitos outros países que estão enfrentando a polarização política, vive uma situação de anomia, tal como definiu o sociólogo francês Émile Durkheim, onde as regras sociais básicas de convivência estão em profunda crise. Quando concluíamos esta análise, que foi motivada pelo atentado de Buffalo, outra tragédia se abatia sobre a sociedade estadunidense: um atirador de origem latina, Salvador Ramos, assassinou 19 crianças de duas professoras em uma escola de ensino básico na cidade de
Uvalde, no Texas, em 24 de maio. A população da cidade de 16 mil habitantes é composta majoritariamente por latinos. Infelizmente é mais um caso e não será o último, num país em que a quantidade de armas em posse dos cidadãos é maior do que a própria população. Armas, ódio, desinformação, manipulação, polarização e indiferença são elementos explosivos em qualquer sociedade, principalmente quando as teorias racistas e conspiratórias dominam o processo político, tal como o faz a teoria da Grande Substituição.