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Os eventos climáticos extremos evidenciam o sofrimento de comunidades latinas nos EUA

Leonardo Martins de Assis | 16/10/2024 19:55 | Análises
IMG Image courtesy of Mike Trenchard, Earth Sciences & Image Analysis Laboratory, NASA Johnson Space Center.

Em outras oportunidades, o Latino Observatory abordou a temática sobre o impacto dos desastres naturais em comunidades latinas. Ainda em fevereiro de 2022, discutimos como as mudanças climáticas afetam as minorias, mais propensas a viver em áreas de riscos e ter menos recursos para lidar com a crise. Posteriormente, em setembro de 2022, apontamos que um estudo inédito demonstrava que os latinos foram impactados pelo Furacão Harvey de maneira desigual. Nesses dois anos que passaram desde as postagens, os eventos climáticos extremos intensificaram-se e tornaram-se mais comuns do que eram antes. Como exemplo, em 2023, o Brasil registrou 12 eventos climáticos extremos, sendo que “nove das ocorrências foram consideradas ‘incomuns’ e duas ‘sem precedentes’”.


O período entre maio e outubro nos Estados Unidos está sendo chamado pelos especialistas de “Temporada do Perigo, estudos mostram que essa época marca a maioria dos eventos climáticos extremos que ocorre no país. Na metade da temporada do perigo de 2024, 99% da população já teria recebido algum alerta de clima extremo no país, segundo a avaliação da Union of Concerned Scientists. O mês de maio foi o segundo mais ativo em condições climáticas severas nos últimos 20 anos, com 2 tornados EF-4, o segundo pior da escala. A Califórnia registrou o quarto maior incêndio da sua história. Inundações tomaram parte do Texas, por conta do furacão Beryl em julho, e da Costa Leste, causadas pela tempestade tropical Debby. Ainda, o aquecimento anormal do Atlântico Norte e a transição para o La Niña geraram o que pode ser considerada a pior temporada de furacões da história, com três furacões de grande potencial atingindo a região: o Beryl, o Helene e o Milton.


Méndez, Flores-Haro e Zucker, professores da School of Social Ecology, na University of California, trabalham com o termo “violência lenta” - utilizado por Rob Nixon, um autor sul-africano e professor na University of Wisconsin-Madison - para definir a marginalização das pessoas migrantes no contexto das mudanças climáticas. Para eles, violência lenta refere-se aos “danos prejudiciais e mortais de movimento lento, decorrentes da degradação ambiental causada pelo homem ou das mudanças climáticas” (tradução nossa). Ademais, esse tipo de violência seria caracterizado pela invisibilidade, ou seja, a maioria das pessoas não enxerga ou se preocupa com esse tipo de ação. Méndez, Flores-Haro e Zucker, ainda afirmam que as pessoas migrantes indocumentadas são invisíveis para “os formuladores de políticas e organizações de assistência a desastres” e não são consideradas “vítimas dignas dos desastres” (tradução nossa).


Esses aspectos descritos pelos autores podem ser facilmente identificados nos contextos das crises de 2024. Os latinos não sofrem apenas com a severidade e frequências dos atuais eventos climáticos; o contexto atual é marcado por uma intensificação das políticas anti-imigrantes. Ou seja, ao invés das “violências lentas” tornarem-se destaques e preocupações para os formuladores de políticas públicas, que foram exacerbadas, colocando a população latina em maior risco e exposição aos desastres.


Por exemplo, em 2023, o governo de Ron DeSantis na Flórida aprovou o Projeto de Lei do Senado 1718 que limitava diversos direitos das pessoas migrantes indocumentadas. Entre as ações da Lei, as principais são: i. a exigência que hospitais que aceitem o Medicaid incluam perguntas sobre a situação legal das pessoas em seus formulários; ii. verificação do status legal dos trabalhadores de empresas com 25 funcionários ou mais; iii. proibição dos governos locais de emitirem Cartões de Identificação (ID) para estrangeiros ilegais e invalidade dos cartões de identificação emitidos em outros estados, e; iv. criminalização do transporte intencional de pessoas sem documentos. Apesar da última ação, que criminaliza o transporte de pessoas migrantes, ter sido revogada pelo poder judiciário, muitas pessoas indocumentadas temiam que, se fossem para abrigos durante o Furacão Milton, arriscariam serem deportadas. Ademais, a evacuação também gerava medo nos latinos por temerem que, caso saíssem da Flórida, não poderiam retornar para o estado. Há, ainda, o medo de solicitar alimentos ou sacos de areia, que protegem as casas, por receio de requererem algum documento.


Ainda no final de setembro, o Furacão Helene deixou um rastro mortal no sudeste dos Estados Unidos, marcado por ventos fortes, chuvas pesadas e uma grande extensão. O Tennessee foi um dos estados afetados, registrando 4 mortes com inundações sendo registradas pela região. Comunidades latinas localizadas no estado dependeram da ação voluntária de outros hispânicos para resgate, apoio e assistência. Marlon Espinoza e Daniel López, dois trabalhadores de uma fazenda de tomates tomada pelas inundações, perderam todos os seus pertences, incluindo comida e roupas. Eles relatam que esperavam a tempestade, mas não imaginaram que as águas do rio subiriam tão rápido, por isso, tiveram que pegar todos os pertences necessários e fugir para um lugar mais alto.


Após o desastre, um grupo de voluntários latinos chegou para salvar Espinoza e López, além de outros trabalhadores da região. Ao chegar no local, o migrante hondurenho, pastor Alexis Andino, que estava com os voluntários, disse (https://www.npr.org/2024/10/05/g-s1-26557/hurricane-helene-latino-farm-workers-tennessee-isolated):“Queremos dizer a vocês que o que estamos fazendo esta noite é o mínimo que podemos fazer por nosso povo. É o mínimo que um hispânico pode fazer por outro hispânico. Agradecemos a Deus por estarmos vivos.” (tradução nossa).


Em outra região do país, no oeste da Carolina do Norte, encontram-se os Montes Apalaches. Segundo o último censo, 53latinos vivem no local, mas o número real pode ser maior, visto que muitos não responderam ao censo por conta de sua situação legal, além de outros latinos que foram para a região como trabalhadores temporários da colheita. Por lá, não temos informações sobre o real impacto do furacão Helene. Muitas famílias vivem em parques de trailers nas áreas baixas, perto de córregos e rios. O principal desafio é encontrar informações em seu idioma, visto que muitos órgãos não utilizam o espanhol. Essa situação com o idioma se repete no estado da Flórida, no Condado de South Hillsborough. Ana Lamb, uma voluntária comprometida com os esforços de resgate, criou um bate-papo há alguns anos que recebeu inúmeras mensagens informando os danos do furacão e de pessoas pedindo ajuda.


Após as inundações do Furacão Helene, seis trabalhadores de uma fábrica de plásticos em Erwin, Tennessee, ficaram desaparecidos. Quatro dos seis trabalhadores eram mexicanos-americanos. Na maioria das noites que seguiram o furacão, parentes e amigos dos desaparecidos reuniram-se em frente às igrejas, escolas e supermercados da região para fazer vigílias. Orações eram ditas em espanhol pedindo que os trabalhadores fossem encontrados. As famílias convivem agora com as dúvidas, questionando “por que foram trabalhar? Por que não escaparam antes?”. Alguns trabalhadores que conseguiram fugir antes das enchentes, disseram que as evacuações começaram tarde demais. Segundo os relatos, “alguns se agarraram aos canos nas caçambas dos caminhões por até seis horas enquanto faziam ligações frenéticas para o 911 e se despediam de entes queridos” (tradução nossa).


Durante as preparações para o furacão mais recente, o Milton, outro caso chamou atenção. Uma mãe, Lupita Lara, que mora com sua família próxima a Orlando, passou algumas horas tentando contato com um dos abrigos da cidade. Ela precisava de uma vaga para o seu filho que é uma pessoa com deficiência e precisa de um respirador para dormir todas as noites. Depois de muitas tentativas, ela decidiu ligar para a Farmworker Association of Florida (FWAF), uma organização sem fins lucrativos que une trabalhadores migrantes rurais da Flórida. Mesmo com o apoio deles para a tradução, o abrigo afirmou que não teria vaga garantida e seria necessário buscar em outro abrigo.


Todos os casos relatados neste texto aconteceram entre 26 de setembro e 9 de outubro. Foram menos de 15 dias que marcaram o sofrimento de centenas de famílias latinas em diferentes regiões do país. Na maioria dos relatos, identificamos a dificuldade de informações, as barreiras linguísticas e culturais e a negligência como potencializadores da destruição causada pelos movimentos da natureza. Dessa forma, podemos notar nos relatos aquilo que os autores citados anteriormente chamam de “violência lenta”, ou seja, a invisibilidade imposta às comunidades coloca-as em situação de extrema vulnerabilidade. Ainda, o ritmo dessa violência tem sido intensificado com as rápidas mudanças climáticas e, como nos casos citados, as famílias tiveram pouco tempo para se recuperar e já precisavam preparar-se para mais um evento climático extremo, pior que o anterior.

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