Religião e política são temas que se misturam nos Estados Unidos desde o estabelecimento das primeiras colônias na América do Norte. Um dos fundamentos da nova sociedade foi a liberdade de religião, particularmente daquelas famílias que deixaram a Inglaterra por conta das perseguições religiosas, como os peregrinos, que aportaram em 1620 em Plymouth (MA), no navio Mayflower; os puritanos (calvinistas) que chegaram dez anos depois em Boston, no navio Arbella, em 1630, que trouxe o líder religioso John Winthrop (autor do famoso discurso “A Model of Christian Charity”); e ainda, as famílias católicas lideradas por Leonard Calvert, que se estabeleceram em Maryland, em 1634.
Especificamente sobre John Winthrop, seu discurso criou o mito do excepcionalismo estadunidense, afirmando que os primeiros colonos puritanos seriam o novo povo “eleito” por Deus, da mesma forma que as terras a serem desbravadas seriam uma “Nova Canaã”, onde os habitantes locais deveriam ser banidos como outrora foram os cananeus, quando os hebreus fugindo da escravidão no Egito se apossaram daquelas terras. Uma parte do discurso merece destaque: “Descobriremos que o Deus de Israel está entre nós, quando dez de nós forem capazes de resistir a mil de nossos inimigos; quando Ele nos fizer um louvor e glória que os homens dirão das plantações sucessivas, que o Senhor faça como a da Nova Inglaterra”. Pois, devemos considerar que seremos como uma cidade sobre uma colina.
Os olhos de todas as pessoas estão sobre nós”. Essa perspectiva messiânica sobre papel dos Estados Unidos no mundo ocorre até os dias atuais, quando o governo de Washington insiste impor aos demais povos a sua visão de justiça, de democracia e de modelo econômico.
A influência religiosa na política atingiu um novo patamar no começo do século XX, quando grupos religiosos se bateram pela proibição de bebidas alcoólicas no país. Em 1919, eles foram vitoriosos com a aprovação da Décima Oitava Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que instituiu a Lei Seca, vetando o consumo público e privado de bebidas alcoólicas. Esta emenda constitucional, diante do fracasso de evitar a produção, importação e consumo dessas bebidas, foi derrubada pela Emenda XXI, em 1933.
Também por conta de pressões religiosas, o ensino da teoria da evolução de Charles Darwin foi banido em diversos estados na década de 1920. Na perspectiva dos grupos religiosos, o ensino das ideias de Darwin chocava de frente com a ortodoxia da Bíblia por isso deveria ser banida das escolas. O “Julgamento de Scopes”, também conhecido por “Julgamento do Macaco”, colocou no banco dos réus o professor John T. Scopes, que afrontou uma lei estadual do Tennessee ao ensinar o evolucionismo a seus alunos do ensino médio. O principal acusador no caso foi William Jennings Bryan, ex-secretário de Estado e ativo membro da Igreja Batista, um líder político muito famoso, que fora candidato a presidente dos Estados Unidos em três tentativas. Scopes foi condenado a pagar uma indenização de US$100.00, mas o julgamento chamou atenção para o poder político associado às religiões protestantes.
Na década seguinte, outro exemplo de influência política da religião se relaciona às atividades propagandísticas do padre católico Charles Edward Coughlin, um orador habilidoso que utilizou um programa de rádio para transmitir ideias fascistas durante a década de 1930. Seu programa era ouvido por dezenas de milhões de pessoas. Nele difundia teoria conspiratórias contra os judeus e sua suposta ligação com Wall Street. Atacava o presidente Franklin D. Roosevelt, acusando-o de socialista. Defendeu a reinstituição da prata na base monetária dos Estados Unidos e também o isolacionismo durante a II Guerra Mundial. Chama atenção uma frase proferida à época, que teve grande repercussão na política atual do país: “Menos atenção com o internacionalismo e mais
preocupação com a prosperidade nacional”
É interessante notar que o radicalismo do Padre Coughlin foi resgatado por um documentário da CNN, transmitido em 14 de janeiro de 2022, que tratou da disseminação de teorias conspiratórias em meio à crise que enfrenta o sistema político dos Estados Unidos, justamente quando se completa um ano da invasão do Capitólio por parte de grupos de extrema-direita
ligados a Donald Trump.
A partir da década de 1950, a influência religiosa sobre a política ganharia novo ímpeto com a emergência do “televangelismo”, que notabilizou pastores como Rex Humbard, Jimmy Swaggart e Pat Robertson. Este último se converteu no mais influente pastor dos Estados Unidos ao criar a sua própria rede de televisão, a Christian Broadcasting Network. De posições ultraconservadoras, Pat Robertson é membro do Partido Republicano. Em 2012 ele tentou se candidatar a presidente, mas perdeu a indicação no partido para Mitt Romney.
Muitas das tendências associadas ao trumpismo ou ao Tea Party têm origem nas pregações de Pat Robertson. De acordo com Robert Boston, autor do livro “The most dangerous man in America? Pat Robertson and the rise of the Christian Coalition”, o pastor tornou-se um instrumento da elite dos Estados Unidos para alienar uma parcela importante da população do país. A defesa da redução de impostos para os ricos, o corte de serviços sociais, as políticas voltadas contra as minorias que questionam o status quo, foram difundidas por Robertson, além de criar teorias conspiratórias e estapafúrdias que hoje fazem parte do imaginário da grande massa de eleitores trompistas, inclusive a teoria de que um grande asteroide iria colidir com a Terra, tema ironizado pela comédia “Don’t look up”, lançada no final de 2021 pela Netflix.
Conforme o reverendo David P. Gushee, professor de ética cristã na Universidade Mercer, ao
Religion News Service, “Pat Robertson contribuiu muito para algumas das piores tendências do cristianismo americano nos últimos 40 anos. Isso incluiu a fusão do protestantismo branco conservador com o Partido Republicano, o uso e abuso do cristianismo sobrenatural para oferecer interpretações espúrias e inúteis de eventos históricos e o desenvolvimento de um império de mídia cristão conservador que ganhou dinheiro e poder no processo de fazer cristãos comuns contribuem de forma menos reflexiva para a vida americana.”
Um dos resultados dessa política religiosa e ultraconservadora continuada ao longo de décadas se reflete na atuação do governador republicano da Flórida, Ron DeSanctis, que está implementando políticas educacionais que se assemelham àquelas que motivaram o julgamento de Scopes. O economista
Paul Krugman chama atenção a esse aspecto: “Os republicanos efetuaram um avanço político considerável ao denunciar o ensino da TCR (teoria crítica da raça); a estratégia deu certo, apesar de a maioria dos eleitores não ter ideia do que é essa teoria, e, na verdade, ela não está sendo ensinada nas escolas públicas. Mas os fatos nesse caso não importam, porque as denúncias sobre TCR são basicamente um disfarce para uma agenda muito maior: a tentativa de impedir as escolas de ensinar qualquer coisa que deixe as pessoas de direita incomodadas”.
Esta onda conservadora e religiosa também está afetando fortemente a comunidade latino/hispânica dos Estados Unidos. Segundo a jornalista Alejandra Molina, do
Religion News Service, uma pesquisa sobre os valores americanos de 2020 do Public Religion Research Institute (PRRI) “descobriu que entre os protestantes latinos (seguidores de igrejas cristãs separadas da Igreja Católica Romana), a identidade política é quase dividida igualmente entre republicanos (32%), independentes (31%) e democratas (28%), enquanto católicos latinos são muito mais democratas (41%) do que republicanos (19%) ou independentes (20%). Latinos sem filiação religiosa são os menos propensos a se identificar como republicanos (7%) e mais propensos a serem democratas (46%); 22% se identificam como independentes”.
Isso pôde ser constatado nas eleições de 2020, onde os latinos evangélicos da Flórida e do Texas votaram majoritariamente em Donald Trump. Na última atualização de
nosso site destacamos o perfil do pastor Samuel Rodriguez, presidente da National Hispanic Christian Leadership Conference (NHCLC), a maior organização evangélica hispânica do mundo, que defende fortemente o presidente Donald Trump. Em entrevista ao
Premier Christian News, Rodriguez afirmou “Este presidente nos deu mais acesso do que qualquer outro presidente na história americana. Podemos nos encontrar com esse presidente mensalmente, e não quero dizer por cinco minutos, e não quero dizer com seu chefe de gabinete, quero dizer, com o presidente, e o presidente ouve. O presidente deu mais acesso à comunidade evangélica do que qualquer outro presidente na história americana, sem dúvida. E o que falamos mais tarde se torna política. É assim que sei que não é exagero. truque político. Não é um tapinha nas costas quando conversamos”.
É importante assinalar que a maior inserção das igrejas evangélicas entre as comunidades latinas não é algo exclusivo dos Estados Unidos, porque desde a década de 1970 as denominações evangélicas ganharam terreno nos países latino-americanos, especialmente no Brasil, onde 30% da população se declara evangélica e 20% dos deputados federais são filiados à “bancada evangélica”. Nesse aspecto, assim como nos Estados Unidos, essa parcela da sociedade defende valores conservadores, se posicionam contra os direitos das minorias e buscam impor restrições ao ensino na sala de aula. Outra questão digna de nota é que existe um forte relacionamento entre as lideranças conservadoras do Brasil e dos Estados Unidos, se refletindo no apoio mútuo aos projetos de Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Por fim, é preciso prestar atenção no movimento político dos evangélicos entre as comunidades latinas, particularmente dos segmentos que mais se radicalizaram nas pautas ultraconservadoras, próximas do trumpismo. Conforme discutimos em
análise anterior, em eleições polarizadas, a vitória dependerá de margens apertadas. Nesse sentido, não se trata apenas de impedir ou não o acesso ao voto, mas principalmente de conquistar a confiança daqueles segmentos que não encontrarão barreiras na hora de votar.