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O cerco dos Estados Unidos ao governo de El Salvador

Editores | 16/12/2021 22:30 | Análises
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Na última atualização deste portal, havíamos chamado atenção para os problemas migratórios e securitários envolvendo o chamado Triângulo Norte da América Central, que inclui Guatemala, Honduras e El Salvador. Também, conforme a análise, verificamos que, em 2021, o número de imigrante vindos da TNAC detidos na fronteira com o México havia superado o número dos próprios mexicanos e que a este problema se soma a criminalidade associada aos cartéis de droga e às gangues criminosas conhecidas como “maras”, criadas por imigrantes da América Central e que atuam nos Estados Unidos e em seus países de origem. Frente à complexidade dos problemas relacionados com esta região, Joe Biden designou a Vice-Presidente Kamala Harris para lidar com o assunto. Em junho de 2021, ela viajou para o México e Guatemala para discutir com autoridades locais medidas para tentar refrear a imigração ilegal e enfrentar as origens desse grande deslocamento populacional. Por fim, naquela análise, ainda tratamos das sanções impostas a personalidades de Guatemala e El Salvador e a criação de uma força-tarefa, em 15 de outubro, liderada pelo Departamento de Justiça para lidar com a corrupção nos países do Triângulo.

Na quarta-feira, 8 de dezembro, o tema do TNAC voltou à tona, quando o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos anunciou uma rodada de sanções contra redes de corrupção vinculadas ao crime organizado transnacional. Nesta lista, foram incluídos os funcionários salvadorenhos Osíris Luna Meza, chefe do Sistema Penal e vice-ministro da Justiça e Segurança Pública, Carlos Amílcar Marroquin Chica, presidente da unidade de Reconstrução do Tecido Social da Presidência, e Alma Yanira Meza Olivares, mãe de Osíris Luna Meza. 

O governo dos Estados Unidos acusou os funcionários de negociar com líderes de gangues presos, incluindo os da Mara Salvatrucha 13 (MS-13) e do Barrio-18, com vistas a diminuir o número de assassinatos no país. No dia seguinte, já por conta do Dia Internacional Anticorrupção, o Departamento do Tesouro emitiu uma nova lista, onde foi incluída Martha Carolina Recinos De Bernal, Chefe de Gabinete do presidente Nayib Bukele, acusada de chefiar um esquema de corrupção multimilionário envolvendo a construção de hospitais e a compra de insumos para o combate à pandemia de Covid-19.

Uma terceira lista de sanções foi divulgada no dia 10 de dezembro, por ocasião do dia “Dia Internacional de Luta Contra a Corrupção”, que tinha como alvos pessoas e entidades da China, Bangladesh, Myanmar e Coreia do Norte. É interessante notar que tais sanções foram anunciadas justamente quando ocorreu a “Cúpula da Democracia”, um encontro virtual organizado por Joe Biden visando “renovar a democracia em casa e confrontar as autocracias no exterior”, tendo como eixos o combate ao autoritarismo, a luta contra a corrupção e promoção dos direitos humanos. O evento contou com a participação de 111 países, incluindo Taiwan e Kosovo, entidades não reconhecidas pela ONU.  

As sanções unilaterais dos Estados Unidos se baseiam no “Global Magnitsky Human Rights Accountability Act, EO 13818”, de 20 de dezembro de 2017, uma reforma na lei criada em 2012, durante o governo de Barack Obama. Por meio desta lei, todos os bens e interesses de propriedade das pessoas sancionadas que estejam nos Estados Unidos ou em posse, ou controle de pessoas nos EUA estão bloqueados e devem ser informados ao Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês). Além disso, quaisquer entidades que pertençam, direta ou indiretamente, 50 por cento ou mais, a uma ou mais pessoas bloqueadas, também ficarão bloqueados. As proibições incluem a realização de qualquer contribuição ou fornecimento de fundos, bens ou serviços por, para, ou em benefício de qualquer pessoa bloqueada ou o recebimento de qualquer contribuição, ou fornecimento de fundos e bens de qualquer outra pessoa. 

As sanções contra El Salvador

À primeira vista, as sanções impostas contra autoridades de El Salvador possuem relação com a corrupção e com o crime transnacional ligado ao tráfico de drogas e à violência patrocinada pelas “maras”. Desde que tomou posse, em 2019, o presidente Nayib Bukele vem realizando um governo considerado muito controverso, refletindo sua personalidade, que quando era prefeito das cidades de Nuevo Cuscatlán e San Salvador, se definia como um quadro de esquerda. Após a posse como presidente, mudou sua posição em 180 graus, se revelando um político conservador e autoritário, se aproximando de Donald Trump. A imprevisibilidade de seus posicionamentos tem causado muitas crises políticas em seu país.

A primeira crise política enfrentada por Bukele ocorreu em 9 fevereiro de 2020, quando ele liderou a entrada de tropas do Exército nas instalações da Assembleia Legislativa em um esforço para coagir os deputados a aprovarem um pedido de empréstimo de US$109 milhões do Banco Centro-americano de Integração Econômica (BCIE) para equipar a Polícia e o Exército, dentro de seu plano para enfrentar a violência endêmica no país. Naquele momento, quando o partido de Bukele era minoritário no parlamento, o país esteve à beira de um golpe de estado, mas o presidente recuou apesar de sua forte aprovação popular.

Outra crise institucional ocorreu em maio de 2021, quando a Assembleia Legislativa aprovou as destituições de cinco ministros da Suprema Corte e do Procurador-Geral do país. É importante informar que em fevereiro de 2021, o partido de Bukele, “Nuevas Ideas”, conquistou a maioria de dois terços no parlamento, o que lhe garantiu poderes para fazer profundas reformas no país. Além de críticas internas, a ação liderada por Bukele resultou em contestações internacionais, como a da deputada Norma Torres — Califórnia (D), que acusou Bukele de autoritário e pediu sanções contra seu governo. Também por conta da destituição de juízes, em 4 de maio, o senador Robert Menéndez, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, e seu colega, também democrata, Patrick Leahy, presidente do Comitê de Apropriações, instaram o governo do presidente Joe Biden a usar seu poder de coordenação com organizações multilaterais e demonstrar ao governo salvadorenho que o apoio financeiro ao país está sujeito ao respeito pelas instituições democráticas.  

Vale lembrar que Bukele já havia entrado em choque com parlamentares democratas dos Estados Unidos ao exortar a população da Califórnia a não reeleger a deputada Norma Torres. Por conta disso, o parlamentar democrata Albio Sires (NJ) alertou que as ameaças e a interferência de Bukele ferem a segurança nacional dos Estados Unidos: “Nas últimas semanas, funcionários do governo salvadorenho tentaram desacreditar membros do Congresso dos Estados Unidos ou usar a desinformação para deturpar as opiniões de alguns congressistas. Infelizmente, esta campanha para manipular a percepção pública foi apoiada por milhões de dólares em pagamentos a lobistas americanos. Como resultado, membros do Congresso estão recebendo ameaças de morte e assédio. Recentemente, a escalada atingiu o ponto onde o chefe de Estado de El Salvador pediu aos eleitores de uma congressista que votassem para destituí-la do cargo e espalhou teorias de conspiração apoiadas por seus oponentes políticos. Isso é interferência eleitoral estrangeira. Se continuar, vamos enfrentá-lo como uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”.  

Nayib Bukele é um político pouco convencional. Refere-se a si próprio como “geek” e “millenial”, o que lhe garante muita familiaridade com as novas tecnologias e as redes sociais, inclusive utilizando fartamente do recurso das fake news, como no caso mencionado acima. Nesse sentido, outra medida, desta vez de grande repercussão mundial, foi o anúncio de que o país adotaria o Bitcoin como moeda de circulação local, ideia que vigorou em 7 de setembro, quando entrou em operação o aplicativo Chivo Wallet, que permite a conversão da moeda digital em dólares, o papel-moeda de circulação local. O aplicativo permite que as remessas de emigrantes possam ser feitas sem taxas de intermediação, como as cobradas por agentes como Western Union ou Paypal. Apenas esta medida garantiria uma economia de US$400 milhões aos salvadorenhos, e daria ao país certo alivio frente a possíveis sanções sobre transações nominadas em dólares. Para os críticos de Bukele, a adoção da criptomoeda poderia facilitar a lavagem de dinheiro e impulsionar transações ilegais, beneficiando, inclusiva, as “maras”.

Outro ponto de atrito entre o governo de Bukele e o governo Biden diz respeito à lei aprovada em 15 de outubro, que trata de regular o financiamento de Organizações Não-Governamentais (ONGs) com fundos estrangeiros, a chamada “Lei de Agentes Estrangeiros”. Pela medida, todas as pessoas e organizações cujas atividades sejam direta ou indiretamente financiadas por uma entidade estrangeira devem se registrar como um “agente estrangeiro” e se submeteram às inspeções do governo. A lei cria também um imposto de 40% a ser aplicado sobre os pagamentos estrangeiros efetuados às ONGs. Diante disso, os deputados Albio Sires e Mark Green (R-TN) emitiram um comunicado exortando o governo de El Salvador a reverter os efeitos daquela lei: “Instamos a Assembleia Legislativa de El Salvador a reconsiderar sua proposta de lei de 'agentes estrangeiros' e a evitar prejudicar as operações de organizações não governamentais independentes em El Salvador. O projeto de lei daria margem de manobra ilimitada ao Poder Executivo para encerrar organizações independentes sob o pretexto de proteger a “ordem pública”. Também impactaria o jornalismo independente, enquanto imporia severas penalidades fiscais a grupos de caridade e organizações religiosas que trabalham para ajudar os salvadorenhos mais vulneráveis”.  

Nesse ambiente de degradação das relações entre El Salvador e o governo Biden, a questão da imigração ilegal, do tráfico de drogas e da atuação das “maras” é um elemento a ser considerado, pois, envolve um tema recorrente no imaginário popular dos Estados Unidos e possui grande apelo eleitoral. A aplicação das sanções contra autoridades salvadorenhas se relaciona a uma suposta negociação secreta entre o governo de Bukele e as duas principais maras, a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18, com vistas a diminuir as taxas de assassinatos no país. As autoridades do Departamento do Tesouro afirmaram que, em 2020, o governo de Bukele forneceu incentivos financeiros às maras salvadorenhas MS-13 e Barrio 18 para garantir que os incidentes de violência de gangues e o número de homicídios confirmados permanecessem baixos, além de garantir apoio político ao partido político “Nuevas Ideas” nas eleições do começo de 2021.  

As pendências entre ambos os países avançaram, inclusive, para a crítica do governo de Washington contra a medida que autoriza a reeleição de Bukele, aprovada pela Suprema Corte do país, tal como segue: “O governo dos Estados Unidos condena a decisão de 3 de setembro da Câmara Constitucional da Suprema Corte de El Salvador, que autorizou a reeleição presidencial imediata em violação à constituição salvadorenha. A constituição salvadorenha proíbe claramente que os presidentes se candidatem à reeleição para um mandato consecutivo”. É importante destacar que nesse nível de rivalidade há um fator adicional de grande relevância subtendido nas medidas para conter, ou talvez depor, Nayib Bukele: o fator China.

O fator China
Até 2018, El Salvador era um dos poucos países da América Latina a manter relações diplomáticas com Taiwan. Naquele ano, o presidente Salvador Sánchez Cerén, do partido Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN), reconheceu o princípio de uma única China e estabeleceu relações com o governo de Pequim. No ano seguinte, os salvadorenhos elegeram Bukele, ex-membro da FMLN, que logo no início do governo prometeu revisar a mudança de status com a China. Em palestra feita na Heritage Foundation, em 13 de março de 2019, Bukele se valeu de palavras muito duras contra o governo de Pequim, dizendo que o país não respeita regras, que mantém seu câmbio artificialmente, que os projetos de infraestrutura são inviáveis e que legam aos países pesadas dívidas. Bukele então exigiu respeito da China para manter as relações bilaterais.  

Naquela oportunidade, ele disse o que a audiência de extrema-direita gostaria de ouvir. Em reunião com Trump, em 25 de setembro de 2019, Bukele afirmou: “E, na verdade, para nós, os Estados Unidos não são apenas um parceiro e um aliado, mas também um amigo. E mostraremos essa amizade — uma das razões pelas quais assinamos o acordo é porque queremos mostrar essa amizade ao nosso aliado mais importante, que são os Estados Unidos. E para nós, isso é muito, muito importante”.  

Apesar disso, Bukele foi recebido por Xi Jinping em 3 de dezembro de 2019, numa visita de estado, ocasião em que foram assinados diversos acordos. Naquela oportunidade, o presidente de El Salvador disse “que seu país agradece a ajuda da China e espera cooperação com a China nas áreas de investimento, comércio, construção de infraestrutura, agricultura, turismo, cultura, ciência e tecnologia, bem com a Belt and Road Initiative”. Bukele disse ainda esperar que sua visita possa ser um novo ponto de partida para abrir um futuro brilhante para as relações bilaterais. Como se vê, outra mudança de 180 graus. Considerando o contexto de rivalidades entre China e Estados Unidos e as pressões de Washington contra a presença chinesa no “Hemisfério Ocidental”, Bukele desde então vem contando com a antipatia do governo dos Estados Unidos.

Um dos pontos de desconfiança dos Estados Unidos com relação à parceria China-El Salvador é a construção de um grande projeto industrial-comercial, de um aeroporto e de um complexo turístico adjunto ao porto La Union, nas águas profundas na baía de Fonseca. Este projeto é liderado pela empresa estatal chinesa Beijing Asia Pacific Xuanhao Project Investment e demandará investimentos de US$23 bilhões. O local onde está sendo construído o projeto é próximo de Honduras e da Nicarágua, e poderá ser um hub para posteriores investimentos chineses na região. O establishment dos Estados Unidos está muito desconfortável com a presença da China em uma região tradicionalmente sob sua influência. Nesse aspecto, vale a pena ler o relatório preparado por Robert Evan Ellis que faz um apanhado dos diversos aspectos da relação entre Pequim e San Salvador, chamando atenção para as ameaças aos interesses estratégicos de Washington e, em simultâneo, reforçando a necessidade de ações concretas do governo estadunidense para se contrapor aos investimentos chineses.

Ainda nesse aspecto vale a pena citar uma reportagem da NBC News que adverte contra a presença chinesa em El Salvador: “Oficiais de inteligência e militares americanos dizem que o projeto do porto daria à China um ponto de apoio econômico e estratégico significativo no que tem tradicionalmente sido uma esfera de influência americana. É um dos muitos exemplos de como a China está fazendo sentir seu poder e influência na América Latina e no Caribe de uma forma que as autoridades dizem ser prejudicial aos interesses dos EUA e por métodos que os EUA não podem empregar”. 

Concluindo esta análise, vale a pena pensar que a escalada de sanções contra o governo de El Salvador possui um forte componente geopolítico com vistas a tentar conter a presença da China na América Central. As justificativas para a imposição de sanções, por mais que sejam relevantes, ainda mais contra um governo autoritário como o de Nayib Bukele, poderiam justificar a adoção de sanções contra muitos outros aliados dos Estados Unidos envolvidos com crimes transnacionais, violação de direitos humanos e corrupção. No entanto, a lógica do poder direciona sua artilharia contra aquilo que é mais sensível, como o atual estado de competição estratégica entre Washington e Pequim, onde o governo de um pequeno país da América Central é apenas um peão e seu presidente é o vilão da vez.

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